Opinião

O obituário de minha mãe

Genilson Coutinho,
27/12/2018 | 18h12

A alegria entre amigos

João de Deus Barreto

O ano de 2018 não terminou, mas levou muitas pessoas queridxs, dentre eles artistas, militantes e amigos do nosso convívio.

Dentre essas pessoas especiais, está Maria Luiza, mãe de LGBTQ+, apaixonada por gatos, colaboradora e apaixonada pelo Dois Terços. Lá estava ela no meio dos nossos internautas debatendo, sorrindo e mostrando o quanto o amor de uma mãe faz a diferença .

Ela nos deixou e muitos nem souberam por pedido da mesma, mas vamos compartilhar com vocês essa mensagem linda de João Barreto com os amigos e com todxs. Confira abaixo.

Depois da morte da minha mãe eu só de fato desmoronei duas vezes. Refiro-me àqueles deslizamentos de terra emocionais, quando grandes placas tectônicas de tristeza e desamparo se chocam e produzem inundações. Uma foi quando eu trouxe a sua bagagem de volta para a nossa casa: uma bolsa contendo dois óculos, brincos, lenços de papel, pente de madeira, escova de cabelo, receitas médicas, recibos de VISA Electron… daquele tipo que fica perdido nas nossas bolsas e mochilas e que vai se acumulando aos montes como substrato lá no fundo. Detritos de uma vida em andamento. Pedaços de processos mentais que agora já não fazem mais sentido e de uma mente que já não existe mais. Os brincos continham gordura de pele, a escova continha fios de cabelo. Junto com a bolsa, uma bagagem de mão com pijamas e não lembro mais o que. Nessa ocasião, Gregório, o gato branco adotado por ela há dez anos, subiu na sacola e começou a urrar. O mesmo hábito de quando ela viajava e ele não a encontrava em casa. Deitei no chão e chorei.

Na segunda vez, eu estava arrumando a minha caixa de e-mails e encontrei uma das frequentes mensagens de lembrete que ela me enviava dia sim, dia não…: “Filho, por favor envia [sic] o seu CPF para não sei quem resolver não sei o que…”. Na ocasião, estava na minha sala no trabalho, que compartilho com mais dois editores. Levantei, saí em silêncio e fui para a varanda do segundo andar ficar sozinho e sofrer o que precisa ser sofrido – a perda.

A perda de um ente querido não deixa um vazio. Em minha opinião, quem disse isto está errado. Ela deixa uma presença que não se resolve, porque não faz sentido. O defunto está presente e não está. Ao mesmo tempo. Deve ser este o grande conflito que no ápice da frustração causa a emergência das lágrimas.

“Só não tem jeito para a morte”, ela dizia, quando alguma coisa pequena dava errado na vida dela ou na vida das muitas pessoas que a amavam. E são muitas as pessoas que a amavam. Há cinco meses todas essas pessoas se juntaram ao meu redor e ao redor da memória dela para, em conversas privadas, celebrarmos uma vida bem vivida. Vivida com integridade, compaixão pelo sofrimento do outro, cerveja, tortas, pimentões recheados (horríveis!), sorvetes, passeios, cinemas, museus e exposições.

Muitos amigos perguntam por ela quando me vêm por aí pela cidade ou quando me encontram nas redes sociais. E aí eu dou a notícia: minha mãe – Maria Luiza Barreto Oliveira, colaboradora deste site e amiga íntima de sua equipe – morreu em 03 de junho de 2018, de uma pneumonia agravada por diabetes e artrite reumatoide após duas semanas de internação numa UTI em um hospital de referência em Feira de Santana, Bahia. Estava com 67 anos e a um mês e vinte e oito dias de seu aniversário. Estão aí os fatos duros.

Prometi este texto a Genilson no funeral, em Feira de Santana, ou talvez no carro voltando a Salvador, com outros dois amigos queridos. Mas luto segue o tempo do coração, não segue o tempo jornalístico. E havia promessas a cumprir pelo caminho. Não promessas místicas, mas promessas humanas, cheias de responsabilidade e cuidado. Minha mãe havia me pedido que caso um dia adoecesse gravemente que não se fizesse um circo de lamúrias nas redes sociais, com atualizações vazias, narcísicas, espetáculo até o fim, aquelas correntes de oração e sei lá mais o que. Não, isso ela não queria. Vaidosa, queria ser bem vista, que problemas de saúde ficassem nos bastidores porque na frente do palco tudo tem que ser bo-ni-to. “O mundo já tem miséria demais”, ela poderia ter dito na ocasião em que tivemos essa conversa. Talvez ela tenha dito, não sei.

Quem a conheceu em Salvador, a conheceu aposentada, tietando famosos em pré-estreias para jornalistas, fazendo amizades com todos, defendendo os direitos das minorias na base da postagem na rede social, da palestra e do acolhimento. Foi mãe para muitos mais do que eu. Deu conselhos, teceu críticas, falou abertamente o que pensava. Desaforos inclusive. Mas sempre no intuito de cuidar do outro. Dizia que era de Iansã sem nunca ter jogado os búzios (que eu saiba). Acho que só para fazer barulho e porque se orgulhava de dizer o que pensava sem freios ou filtros. Não sei se filhos de Iansã são assim.

Em Feira de Santana (onde eu nasci e onde ela cresceu), antes desta época, foi executiva de varejo, sentiu o machismo na pele no trabalho e na vida privada, sendo mãe solteira em 1984, quando isto ainda era escandaloso. Mas não se abateu, se reinventou sempre que pôde, viajou o quanto pôde, namorou o quanto pôde e quem quis. E não teve medo de rever suas posições quando descobriu que seu filho único era homossexual. Revisitou seu catolicismo domingueiro e fez as pessoas ao redor dela pensarem mais e melhor. Para defender seu filho (a mim, no caso), para defender sua própria feminilidade, seu empoderamento. Era feminista antes de saber o que era feminismo. Simplesmente era, existia, sem pedir licença para existir. Antes de adoecer, queria visitar o continente europeu, voluntariou para uma ONG de defesa da causa animal, me viu ser aprovado no doutorado, continuando uma história que ela começou nos anos de 1970, mas não pôde concluir.

Sempre presente

Nos anos de 1970, seu sonho era ser engenheira civil, mas com a jornada de secretária executiva e o baixo salário teve dificuldades em estudar e trabalhar. Talvez por isso sempre tenha sido tão rigorosa comigo em questões de educação. Nunca trocou de carro, dizia, dirigindo um Fusca verde-bandeira por mais de 30 anos, para que nunca faltasse dinheiro para pagar o meu colégio. “Educação é prioridade”. Mas, quando criança, me trazia a Salvador em fins de semana esporádicos apenas para ver filmes novos, passar um dia no shopping center, viajar. Em Feira não havia tantos cinemas ou não havia cinema dos anos 1980 para 1990. Não lembro. Lembro bem dos passeios e de como sempre terminavam em um balão de hélio comprado e em um balão de hélio perdido no estacionamento, subindo aos céus. Talvez parte de mim quisesse perder o balão, religiosamente, para vê-lo subir, desafiando a gravidade e as normas da rotina.

Ela foi na lua de felicidade quando passei em direito na UEFS, mas só ficou feliz (pero no mucho) quando fui aprovado em jornalismo na UFBA. Mas era direito em uma e era UFBA em outra. Não era engenharia civil, mas era a continuação do investimento dela na nossa família. Que, por sua vez, era a continuação do investimento do meu avô na educação da nossa família. A casa de Feira foi construída para que os filhos estudassem mais e melhor. Ela, assim como os irmãos, meus tios, nasceram em Anguera, mais interior da Bahia do que Feira e que não tinha ensino médio nos anos de 1960 para 1970.

Então, agora, entendam porque o filho atrasou o obituário. Ninguém mais poderia escrevê-lo, foi o acordado com o editor-chefe deste site, meu amigo há uma década ou mais. Nada pode ser dito sem ser pensado. E nada pode ser pensado sem ser sentido. É preciso amadurecer os sentimentos antes de dar respostas, de escrever sobre os fatos. É preciso sentir tudo. É preciso preservar a memória do jeito certo, do jeito que as pessoas gostariam de ser lembradas, com verdade, com vontade e com edições nos lugares certos, para dar uma embelezada, porque só não tem jeito para a morte e porque já tem miséria demais no mundo.

Esta é a minha homenagem a ela. Não sou de falar em público, nada disse no seu funeral. Tudo que precisávamos conversar sempre conversávamos pessoalmente (sem freios, sem filtros, às vezes aos berros na frente de amigos ou de estranhos). Tivemos a oportunidade de nos despedirmos no hospital e falamos abertamente e com honestidade sobre tudo, sobre a sua morte inclusive. Mas sei escrever bem. Então escrevo: as histórias não têm fim. Aqueles que amamos existem em nós e nós existimos naqueles que amamos. E, sobretudo, aquele que vive com compaixão e amor ao próximo nunca está ou estará sozinho. Desta feita, neste caminho: aqueles que semearam amor nunca morrem sozinhos. Eu sei porque eu estava lá quando aconteceu. Eu estava presente quando minha mãe morreu.

 

João de Deus Barreto: jornalista, mestre em comunicação, estudante de doutorado em políticas, tecnologias e usos da informação. Gosta de gatos, cactos e dias chuvosos. Twitter: @segundojao