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O armário dispensável

Genilson Coutinho,
15/07/2014 | 11h07
Atleta olímpico Ian Thorpe sai do armário e se assume gay

Atleta olímpico Ian Thorpe sai do armário e se assume gay

Por Gésner Braga*

Uma onda de aceitação da diversidade sexual parece dar os seus primeiros passos, ainda que tímidos, em um dos redutos mais conservadores e machistas da atividade humana: o futebol. Continuam muito raros os exemplos de jogadores que se assumiram gays, como Marcus Urban, Michael Sam, Robbie Rogers ou Thomas Hitzlsperger, mas suas atitudes têm obtido apoio, inclusive institucional.

Boas iniciativas vêm de longa data. Em novembro de 2010, o então atacante do Bayern de Munique, Mario Gómez, aconselhou jogadores gays a assumirem sua orientação sexual, de modo a não ter este aspecto das suas vidas como um peso na profissão. No ano seguinte, foi a vez de Manuel Neuer, goleiro da seleção alemã, fazer o mesmo em entrevista à revista Bunte, durante a qual alegou que torcedores vão se acostumar rapidamente com tais revelações. “O que importa é o rendimento do jogador, não a preferência sexual”, afirmou.

Já apoios institucionais vieram de duas frentes em ocasiões recentes. Poucos dias antes da abertura da Copa do Mundo no Brasil, o Google lançou a campanha mundial #ProudToPlay, contra o preconceito e a homofobia, com o objetivo de mostrar a presença de pessoas LGBT no esporte, usando exemplos de atletas que assumiram publicamente sua orientação homossexual. No dia 16 de junho, com o campeonato mundial já em curso, a alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Navi Pillay, concedeu entrevista a jornalistas em Genebra, durante a qual defendeu que jogadores de futebol homossexuais deveriam “declarar sua sexualidade para ajudar a tornar gays e lésbicas aceitos em todo o mundo”, justamente porque são exemplos seguidos por seus fãs e por ser uma vergonha que pessoas ainda “tenham de esconder quem realmente são”.

Entretanto, essas manifestações favoráveis à revelação pública da sexualidade estão bem longe de ser unanimidade. E não se trata aqui da óbvia e opressiva resistência que há dentro do meio esportivo, sobretudo no futebol. Falo da atitude refratária entre pessoas familiarizadas com o tema e seus tabus, inclusive dentro do movimento LGBT. O principal argumento é que cada pessoa tem seu tempo de maturação e, mesmo que o “armário” seja o pior lugar para se ficar, ninguém pode ser arrancado de lá sem sua própria anuência ou – mais ainda – sem que seja sua a iniciativa. A sexualidade faz parte do foro íntimo de cada pessoa e sua revelação não pode ser resultado de uma obrigação. Totalmente de acordo! Mas qual dos exemplos acima, por exemplo, abordou o tema como uma imposição? Em todos os casos, observam-se apenas recomendações.

Continuemos a analisar o contexto desses discursos: para justificar como dispensável a revelação da orientação sexual, usa-se com frequência a mesma alegação: se ninguém precisa dizer que é heterossexual, então também não há necessidade de se declarar homossexual. Contudo, tal raciocínio ignora a premissa básica da nossa sociedade machista, na qual se espera que todas as pessoas nasçam e sejam educadas dentro de doutrinas da heterossexualidade hegemônica e a ela correspondam. Neste cenário, é muito cômodo ser heterossexual e, de fato, desnecessário afirmar-se como tal. Afinal, o mundo foi concebido para lhes acolher e servir.

E como ficam as pessoas que não se enquadram no arquétipo heteronormativo? São compelidas a reproduzi-lo fielmente a todo instante para serem aceitas. As consequências da pressão sócio-cultural que rejeita traços de homossexualidade e, sobretudo, de transexualidade nós conhecemos muito bem em notícias diárias de violência motivada por homofobia e transfobia, entre eles o bullying, agressões físicas, homicídios e suicídios.

A princípio, este simulacro a que chamamos de “armário” parece uma solução segura e até recomendada por alguns, a exemplo de notícia veiculada pela Folha de S. Paulo, onde se afirma: “há situações em que é melhor não mencionar que você é gay. Se você pressente uma reação negativa, avalie se vale a pena se abrir”. Porém, o armário nada mais é que um claustro cujas consequências danosas e irreversíveis podem se revelar mais cedo ou mais tarde. Não por acaso, os índices de suicídio entre pessoas LGBT são preocupantes e, volta e meia, tornam-se assunto destacado pela mídia.

Enfim, é preciso analisar a questão por outro prisma: diferente de como muitos entendem, revelar-se homossexual é uma estratégia necessária de demarcação de território, muitas vezes uma questão de sobrevivência, uma forma de dizer: “as convenções que vocês criaram não me servem e não são absolutas como vocês imaginam”. Afirmar a orientação homossexual pode ser, sim, uma experiência traumática quando não se vive em um ambiente propício a esta abertura, o que frequentemente acontece na família, na escola ou no trabalho, por exemplo. Mas então o que fazer, sobretudo ante o atual recrudescimento do ímpeto conservador protagonizado especialmente por facções religiosas? Esperar que uma solução pacífica nasça por geração espontânea? Isso não existe! O imobilismo jamais fará com que a cultura mude e a sociedade avance. Esse papel cabe às nossas ações e espírito proativo.

Por essa razão, as iniciativas de estímulo à revelação da orientação sexual devem ser aplaudidas, pois elas trazem o tema à ordem do dia, dando-lhe a imprescindível visibilidade, primeiro passo para se quebrar tabus e paradigmas. Melhor ainda quando são defendidas por celebridades e pessoas formadoras de opinião, pois isso amplia extraordinariamente o alcance e facilita sua aceitação. E se o resultado dessas ações for a saída do armário por parte de personalidades igualmente célebres, o impacto é ainda mais favorável. Estejamos certos de que este é o melhor caminho e de impositivo ele não tem absolutamente nada.

* Gésner Braga é gay, ativista LGBT, jornalista e mantém o site Clipping LGBT