Opinião

A masculinidade tóxica mata também homens ainda na infância

Redação,
16/05/2023 | 22h05

*Por André Barros

(Foto: Divulgação)

Inspirado por Close, filme francês que fala da amizade de dois garotos de 13 anos, tomei coragem para falar sobre um tema que ainda limita, impõe medo e proíbe toda uma geração de homens de se expor publicamente: a masculinidade tóxica. Este texto não se pretende como uma resenha do filme, por isso, prometo não dar spoilers.

Há muito conteúdo sobre diversidade, equidade de gênero e machismo na imprensa e nas redes sociais sobre masculinidade tóxica. Mas quando busco informações sobre o tema escritas por homens vejo pouquíssimos registros.

A masculinidade tóxica mata também homens ainda na infância e ao longo da vida. Esse traço de comportamento que precisa ser superado ensina os homens a matar, quando adultos, marcando como alvo tudo o que for ou puder ser relacionado ao universo feminino e aparecer no caminho. Uma violência que pode se voltar contra a própria pessoa, em alguns casos.

No meu caso, essa masculinidade tóxica retardou em alguns anos a minha aceitação enquanto homem gay. Também antecipou inadequadamente minha iniciação sexual, já me fez priorizar o trabalho antes de amigos e família, me contaminou com o machismo estrutural e ditou por muito tempo minha forma de agir, de falar, de andar, de vestir e até de comer e beber.

Por algum tempo, tomei café sem açúcar e cerveja mesmo sem gostar, simplesmente para reproduzir a ilusão de que somente adotando uma masculinidade normativa seria aceito e aprovado como parte do padrão e das normas sociais. O problema é que odeio café sem açúcar, não gosto de cerveja – se for artesanal, pior ainda. E só fui capaz de me libertar disso homem feito, depois dos 35 anos. Uma paz e um alívio que muitos ainda não conseguiram atingir. Isso porque os padrões de masculinidade na sociedade brasileira não são apenas reproduzidos e transmitidos de geração em geração, como também são cultuados como dogma sagrado no seio de toda a sociedade – entre homens e mulheres, entre jovens e idosos, entre brancos e pretos, entre ricos e os mais vulneráveis, em todas as regiões do país.

Aposto que você não levaria mais do que dois minutos para lembrar de algum macho alfa convicto e orgulhoso que faz parte do seu círculo de amigos, da sua vizinhança ou do seu ambiente de trabalho – isso quando não faz parte da própria unidade familiar. Algum deles demonstra fragilidade? Costuma agir de modo efusivamente sensível? Demonstra explicitamente que é dengoso ou carinhoso? Esse arranjo tóxico da sociedade termina por matar e formatar os homens para estarem prontos a matar a si mesmos e uns aos outros – inclusive seus amores, sejam eles mulheres, homens e até familiares.

Ainda criança, fui corrigido e doutrinado a nem sequer encostar nas bonecas que eram os brinquedos preferidos de minha irmã e minhas primas. Cercado de meninas, foi definitivamente impossível para mim não me deparar com uma Barbie. Não que quisesse brincar com as bonecas – não tinha vontade disso – era a limitação que me incomodava, pois me cerceava o direito à brincadeira coletiva com elas. Como estavam em maior número, minha irmã e minhas primas se divertiam enquanto eu ficava sozinho, pela divisão tóxica de brinquedos permitidos e proibidos para o tipo de homem que eu deveria ser.

A lista de limitações era grande. Em plena década de 1990, os meninos não podiam dançar “É o Tchan” – e eu adorava o grupo! –, não podiam dormir ao lado de minhas primas, para evitar que meus hormônios me colocassem numa posição favorável de “abuso sexual justificado”. Não podia usar caderno com personagens de desenho animado da sexta série do Ensino Fundamental em diante, embora minha vontade fosse ter um deles.

Quando levamos este tema para o trabalho, a abordagem fica igualmente complexa. O fato do volume de denúncias de assédio sexual e moral contra mulheres ser maior do que contra homens é um indicativo interessante. Outro dado que chama atenção é o fato de homens gays não se sentirem 100% seguros para se comportar naturalmente – e isso também aconteceu comigo por muitos anos. Ouvir mulheres assumindo que precisaram se “masculinizar” de alguma forma, para obterem respeito de chefes e de suas equipes, mostra o quanto a masculinidade representa uma posição de poder.

Certa vez ouvi que um funcionário de uma empresa não conseguiria uma oportunidade em outra área simplesmente por ele ser visto como um homem “afeminado” – e, de fato, seja por este ou qualquer outro motivo, ele não teve acesso à vaga. Seu comportamento, tachado de modo machista como ser “afeminado” representa um agente limitador de sua carreira, deixando de lado sua competência, seus conhecimentos técnicos e os resultados que ele produziu ao longo da carreira.

No âmbito empresarial, a pergunta que fica é: como garantir que a masculinidade tóxica não engula a meritocracia e sufoque a equidade de crescimento profissional? Se a maior parte do mundo é de mulheres, que corpo de funcionários seria este que as empresas continuam a privilegiar só por se tratar de homens?

A sociedade matou e ainda mata muitos Andrés como eu no meio do caminho. A normalidade tóxica me convenceu de que eu também deveria matar uma parte vital minha – e eu me permiti minha autonegação várias vezes –, até bem recentemente, inclusive. Trata-se de uma chacina de homens em nome de uma masculinidade normativa que é chancelada pela Igreja, letrada e pavimentada na Escola e com curadoria vip da Família tradicional. É o homicídio doloso mais naturalizado pela humanidade – do qual ela própria é vítima e algoz.

Enquanto não nos sensibilizarmos de forma esclarecida e lúcida a educarmos nossas crianças, em especial nossos meninos, a serem também sensíveis e livres dessa cartilha masculina que provoca morte, seguiremos acompanhando grandes guerras, brigas entre torcidas organizadas de futebol, atentados contra a vida de mulheres e LGBTs, estupros de crianças e mulheres, homens mantendo apenas homens em cargos de liderança e por aí vai. O primeiro passo para mudar esta lógica coletiva passa por mim, por você que lê esse texto e por todos nós.

*André Barros – Gerente de Comunicação, Responsabilidade Social e Diversidade e Líder do Grupo de Afinidade LGBTQIA+ da Ocyan S.A