Uganda volta à Idade Média

Genilson Coutinho,
07/03/2014 | 10h03

Governo brasileiro precisa reagir à lei que criminaliza os homossexuais ugandenses, cobra secretário da ABGLT. Para ele, projetos no Congresso mostram que o Brasil também não está a salvo das forças obscurantistas e intolerantes que dominam o país africano

Por Toni reis

O Código Penal em vigor em Uganda é de 1950, data em o país ainda era uma colônia britânica, e prevê a criminalização de atos homossexuais. No entanto, sob o governo do presidente Museveni (1986-), desde 1990 a repressão jurídica contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) vem aumentando, culminando na sanção presidencial em 24 de fevereiro de 2014 da “Lei Anti-Homossexualidade”, cujas disposições incluem a prisão perpétua para homossexuais, bem como prisão para quem conhece pessoas homossexuais e não as denuncie às autoridades.

Uma das justificativas esdrúxulas da nova lei é afirmação de que “as pessoas não nascem homossexuais” e que ser LGBT é copiar comportamentos de ocidentais e de colonizadores. No entanto, vários estudos mostram que a homossexualidade sempre existiu em todas as partes do mundo, inclusive há registros de sua existência na África, entre os guerreiros Azande no Congo e entre mulheres em Lesoto, por exemplo, e que ironicamente foram os colonizadores europeus que reprimiram sua prática.

É um paradoxo argumentar que se deve perseguir as pessoas LGBT porque “copiam comportamentos de ocidentais e de colonizadores”: a criminalização da homossexualidade em vários países da África, inclusive em Uganda, tem suas raízes justamente na colonização britânica. Na verdade, o governo de Uganda está copiando e perpetuando a legislação penal que os próprios ex-colonizadores já revogaram em seus países há quase cinco décadas.

Ainda, a literatura mostra que o atual movimento de aumento de repressão contra as pessoas LGBT em vários países da África resultou em parte de uma oficina promovida em Kampala (Uganda) por três missionários evangélicos fundamentalistas norte-americanos em 2009, fomentando a visão da homossexualidade como algo mau e um pecado, bem como a possibilidade da recuperação das pessoas LGBT para a heterossexualidade por meio de “terapias” e a força da fé. Novamente é o caso de “comportamentos de ocidentais e de colonizadores” estarem interferindo nos países africanos, não na “promoção” da homossexualidade, e sim na estratégia da evangelização fundamentalista ocidental a todo custo.

A perseguição às pessoas LGBT em Uganda é um movimento obscurantista que vai na contramão da tendência mundial de respeito às diferenças e da igualdade universal e indivisível de todas as pessoas, sem distinção, que tem como marco a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. É um retorno à Idade Média, uma espécie de caça às bruxas fundamentada em barbárie e impulsionada pela intolerância religiosa. Esta sim, e não a homossexualidade, é o perigo que, por seu extremismo, ameaça a paz mundial.

Na história, todo recrudescimento da intolerância e do fanatismo tem resultado em conflitos, perseguições, guerras e morte em escala horripilante. Neste ano “se comemoram” os cem anos do início da I Guerra Mundial. Quando essa guerra terminou em 1918, com mais de 16 milhões de vidas ceifadas, a seguinte frase ficou gravada em monumentos de pedra dedicados aos mortos em diversos dos países envolvidos nos conflitos: “lest we forget” (para não esquecermos). Não obstante, menos de 30 anos depois, a planeta já havia testemunhado outra guerra mundial ainda mais devastadora, também resultado do fanatismo e da intolerância.

Não podemos “esquecer”. Também não podemos fechar os olhos e ficar calados. Não podemos nunca baixar a guarda contra o surgimento de movimentos que perseguem as pessoas, ou as “minorias”, por causa de alguma característica inerente considerada diferente e inaceitável por forças reacionárias e que, ainda, na história e também no Uganda atual, são utilizadas como bode expiatório que é culpado pelos problemas que o país enfrenta. É preciso, sim, pressionar política e economicamente Uganda, para que a lei que criminaliza as pessoas homossexuais seja revogada e a perseguição às mesmas cesse. Não podemos alegar que é uma questão interna de Uganda que não é da nossa conta. É uma situação que tem repercussões para todos os países e que tem quer ser revertida.

Face a esta situação, já cortaram ajuda humanitária e financiamentos para Uganda o Banco Mundial, Suécia, Estados Unidos, Holanda, Noruega, Dinamarca, entre outros… O Brasil também precisa se posicionar publicamente contrário à violação dos direitos humanos das pessoas LGBT em Uganda, cumprindo a disposição constitucional que estabelece que as relações internacionais do Brasil se regem, entre outros princípios, pela “prevalência dos direitos humanos.” É hora de o Brasil se unir aos demais países que defendem e promovem os direitos humanos e também aplicar sanções políticas e econômicas contra Uganda.

O Brasil também não está livre das mesmas forças obscurantistas e intolerantes que se alastram insidiosamente em Uganda contra a população LGBT. Basta ver algumas proposições de lei em tramitação no Congresso Nacional que têm por objetivo desmantelar os avanços conquistados rumo à igualdade de direitos das pessoas LGBT: PDC 232/2011, ementa: “convocar um plebiscito para decidir sobre a união civil de pessoas do mesmo sexo”; PDC 871/2013, Ementa: “Susta os efeitos da Resolução nº 175, de 2013, do Conselho Nacional de Justiça, que ‘dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo’”; PDC 637/2012, ementa: “susta a aplicação da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, que reconhece como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo”; PDC 993/2013 (e outros), ementa: “Susta a aplicação do parágrafo único do art. 3º e o art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99, de 23 de março de 1999, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual.”

O governo brasileiro tem o dever de fazer valer a laicidade do Estado. Não pode ficar omisso e nem refém dessas forças retrógradas sustentadas pelo fundamentalismo religioso. O Brasil como país emergente que ocupa e influencia cada vez mais as instâncias políticas e econômicas internacionais também tem que dar um exemplo e agir contra a intolerância e a violação dos direitos humanos, tanto no nosso país quanto em países com Uganda.

Desde 1948, o mundo inteiro tem à sua disposição princípios que, se seguidos, levariam ao respeito mútuo, à diminuição dos conflitos e à promoção da cultura da paz entre as pessoas e entre as nações: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a começar com seu artigo 1º “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.

Toni Reis

* Professor, formado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), é especialista em sexualidade, mestre em Filosofia e doutor em Educação. É secretário da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT).