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Transfobia afasta pessoas trans dos serviços de saúde

Redação,
26/02/2024 | 10h02

Na tarde da última quinta-feira (22), o Ministério da Saúde promoveu um webinário dedicado aos cuidados preventivos específicos para pessoas trans e travestis. Sob o tema “Diálogos em prevenção ao HIV: enfrentamento ao estigma e à discriminação de populações em situação de vulnerabilidade nos serviços de saúde, com foco nas populações trans e travesti”, a discussão se concentrou em abordar as mais recentes tecnologias e estratégias de prevenção combinada.

Letramento em gênero e sexualidade

Foi Aline Pilon, consultora técnica na Coordenação-Geral de Vigilância do HIV/Aids e das Hepatites Virais (CGAHV/DATHI/SVSA/MS), a mediadora do webinário. Ela iniciou a discussão com uma breve aula sobre gênero e sexualidade e destrinchou sobre conceitos de masculinidade e feminilidade, baseado em entendimentos empíricos. Segundo Aline, para rompermos com estereótipos de gênero, “temos que desmistificar os conceitos que nos levam a entender o que é a persona masculina e feminina elabora diante da nossa cultura, tempo e local onde estamos inseridos”.

Na sequência, apresentou algumas representações de gênero e identidade. Uma delas foi uma pintura onde aparece uma criança que, no contexto da cultura contemporânea, seria vista como uma menina feminina. Entretanto, a surpresa é que na verdade trata-se de um retrato de Franklin D. Roosevelt, o 32º presidente dos EUA, em 1884, aos 2 anos de idade.

“A construção de feminilidade ou masculinidade é temporal, cultural ou seja de acordo com a cultura onde uma pessoa está inserida”, afirmou complementando que para a comunidade LGBTQIA+ temos que “direcionar as nossas energias, expectativas e estratégias, para que essas pessoas se sintam acolhidas nos serviços de saúde.”

“Quando estamos inseridos em um certo contexto social, somos submetidos ao gênero, recebemos algumas atribuições que são lidas como femininas ou masculinas, [através do nosso sexo atribuído ao nascer] o que chamamos de ‘papéis de gênero’. Um exemplo é a ideia de que futebol é coisa de menino e boneca, de menina. Porém, quando partimos do pressuposto de que existem pessoas com genitálias ambíguas, também conhecidas como intersexo, designar esses papéis pelos papéis de gênero é algo falho, vemos que este conceito cai. […] A nossa identidade de gênero, ou seja, como nos vemos e como expressamos a nossa feminilidade e/ou masculinidade é uma coisa íntima e individual, que se manifesta em seu convívio. Isto não tem nada a ver com seu desejo sexual.”

Aline Pilon explicou que a palavra ‘travesti’ nasceu antes da palavra ‘mulher trans’, e este termo, comum no Brasil e na América Latina, surgiu quando pessoas cis, historicamente, nomearam pessoas trans como pessoas travestidas, de modo pejorativo. No entanto, as pessoas transexuais, com o passar do tempo, como símbolo de militância e luta, pegaram o termo e o ressignificaram como um termo político. “Travesti é um termo que reforça a importância de fortalecer a nossa vivência e de continuarmos resistindo a todo tipo de situação que violenta e nega quem somos.” Já a orientação sexual refere-se a atração emocional, romântica ou sexual de uma pessoa em relação a outras.

Estigma

No encontro online, a palestrante abordou o estigma que ocorre em uma sociedade devido à crença em uma moral estabelecida como padrão. “O estigma é um mecanismo muito eficaz de exclusão social, ele ocorre devido a crença, vista como uma moral estabelecida na sociedade como padrão, e daí surge uma compreensão equivocada acerca de uma característica física, corporal ou de caráter de outras pessoas. Assim começa o ciclo do estigma.”

“O estigma afasta de um grupo social acesso a bens, serviços, direitos, bens materiais e simbólicos da sociedade, incluindo a saúde. Algumas infecções e doenças, por exemplo, promovem o processo de estigmatização, porque são supostamente relacionadas a comportamentos que infringem o comportamento moral dominante da sociedade. O estigma é a junção da desigualdade com a exclusão social, que acarreta e impossibilita o acesso, neste caso, aos serviços de saúde.”

Populações  chaves e prioritárias para a resposta do HIV

Pilon trouxe à roda as populações-chave e segmentos populacionais prioritários para a resposta do HIV: trabalhadoras do sexo, pessoas privadas de liberdade, gays e outros homens que fazem sexo com homens, pessoas trans e travestis, usuários de álcool e outras drogas sofrem de uma prevalência desproporcional, se comparada com a população geral. População negra, indígena, em situação de rua, jovens e adolescentes, também são alvos de vulnerabilidades aumentadas devido a situações, contextos sociais e históricos. “O que queremos dizer é que mulheres trans e travestis sofrem uma vulnerabilidade tão gigantesca, passando pelo mesmo processo de desumanização que foi feito com a população negra no início da história, o que as impede de acessar unidades de saúde e insumos de prevenção. Isso ocorre devido a questões sociais, econômicas, de moradia, etc. Assim, podemos pensar nas vulnerabilidades sistêmicas e elaborar políticas públicas para combatê-las, sejam elas vulnerabilidades individuais, sociais ou programáticas.”

População trans-negra

“Pessoas trans negras são um dado muito importante que evidencia a realidade de discriminação e violência no Brasil. […] Quando olhamos para as pessoas negras, elas enfrentam os piores processos de precarização da vida, com menor escolaridade, menor acesso a cuidados de saúde mental, sexual e reprodutiva, e menor acesso inclusivo às políticas públicas. A maior parte da população em situação de rua é negra, muitas vivendo com HIV, maioria no sistema prisional e das que esperam por retificação de nome e gênero.”

Em seguida, Débora Castanheira, pesquisadora do Laboratório de Anatomia Patológica e Clínicas Integradas, da Fiocruz, compartilhou sobre a importância da prevenção combinada e destacou que isso só se faz com inclusão. Ficou por conta dela pontuar possíveis ações e outras estratégias para alcançar pessoas trans. Uma das medidas propostas foi equipar e qualificar ambulatórios trans, além da capacitação de equipes multiprofissionais, apoiando criação de demanda por estratégias de prevenção combinada e com monitoração das implementações.

Exemplificando o tema, a palestrante mostrou alguns resultados e impactos de um projeto piloto realizado pelo Laboratório de Pesquisas Clínicas em IST e AIDS do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (LAPCLIN-AIDS/INI/Fiocruz) em parceria com o Departamento de HIV/AIDS, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde (DATHI/SVSA/MS).

De acordo com a pesquisadora, foi realizado um mapeamento das unidades dedicadas ao atendimento da população trans no Brasil, por região, e notou-se disparidades na distribuição dos serviços. “Entramos em contato com os sites das secretarias municipais de saúde e com as ONGs da sociedade civil e fizemos um mapeamento, encontrando 130 unidades espalhadas pelo Brasil. Percebemos uma desigualdade muito grande na distribuição desses serviços de saúde.”

Prevenção 

Para a PrEP, precisamos de serviços mais acessíveis e de distribuição democrática nas diferentes regiões do Brasil. Também precisamos de ambulatórios maiores para melhor atender às necessidades das pessoas trans. Além disso, é importante ter uma dispensação adequada da PrEP, a prescrição de hormonização através de um protocolo periódico, um serviço de portas abertas, demanda espontânea ou ambos, e uma enfermeira disponível para que a enfermagem também possa fazer essa prescrição.”

Acessando a população trans

A educadora de pares, Natasha Wonderfull, de Maceió, Alagoas, com base no trabalho que realiza na sua região, trouxe insights pensando em implementar novas estratégias para virar o jogo da realidade das travestis e transexuais brasileiras. ‘‘[Em Maceió], as nossas meninas trans ainda têm dificuldades muito grandes, medo de serem discriminadas, de não terem acesso à saúde adequada e de sofrerem violência.’’

“Já conversei com uma enfermeira que era contra a PrEP. As pessoas que falam isso não passaram pelo o que nós passamos, não viram o sofrimento de ver muitas travestis morrendo por aids. Hoje é diferente, temos a medicação antirretroviral que é maravilhosa, a PrEP, temos os ambulatórios trans, etc. […] Temos uma dificuldade muito grande também com homens trans e precisamos trabalhar em grupo. Muitos têm vergonha de acessar o serviço e é como se não praticassem sexo”, dividiu.

Conforme dito por Natasha, o medo de descobrir o HIV ainda é uma grande barreira para o acesso à PrEP e à TARV. Nesse sentido, ela acredita que a educação entre pares acaba se tornando um modelo e referência em saúde pública, pensando em tornar os cuidados mais acessíveis e confortáveis. A educadora de pares finalizou destacando que existe uma expressiva massa da população que não entende muito bem qual o papel da PrEP e da prevenção de modo geral.

“Eu tive muita sorte na vida, consegui sair da noite e não testar positivo até hoje, mas sigo lutando para defender as minhas meninas.”