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‘Sofro dois tipos de preconceitos: por ser uma mulher trans e por cantar forró’, diz Allyssa Anjos

Carlos Leal,
05/07/2023 | 21h07
Foto: Arquivo pessoal

“Sofro dois tipos de preconceitos: por ser uma mulher trans e por cantar forró. As pessoas me querem dentro de uma caixinha mas sou, antes de tudo, uma cantora e atriz sem rótulos”.

Allyssa Anjos, 22 anos, é a primeira mulher trans cantora e compositora de forró no Brasil. Isso não impede que ela viaje por outros ritmos, como axé music, lambada, música romântica, Jazz, blues e o que mais seu coração mandar. Sergipana da cidade de Lagarto, ainda criança mudou-se com a sua mãe para a cidade de Pojuca, na Bahia, e a partir daí teve a oportunidade de cantar ao lado de artistas consagrados, a exemplo de Gilmelândia e Tonho Matéria. Hoje, morando em Salvador, seu nome vem ganhando cada vez mais espaço. Dentre os destaques, está sua elogiada participação no For All, Forró da TV Pelourinho 2023. Allyssa também acumula as profissões de modelo, atriz e apresentadora, tendo recentemente participado de uma campanha do Governo do Estado Bahia em homenagem ao mês da mulher. Dona de uma voz forte e potente, ela é uma das grandes promessas da nova música brasileira. Nessa entrevista exclusiva ao Dois Terços, ela conta um pouco de sua história e seus projetos.

DOIS TERÇOS: Allyssa, quando você ainda era criança, morando em Lagarto, você já se sentia diferente?
ALLYSSA ANJOS: Sempre! Lagarto é uma cidade pequena e tenho algumas recordações que ainda me machucam. Quando eu era criança pedia para cantar em algum lugar, e ouvia frases como “tire essa mulherzinha daqui. É um viadinho”, isso me deixava muito triste. E dentro de casa também, o meu jeito de cantar, mesmo tendo um timbre grave, incomodava. Eu sofria em casa e na rua.

DT: Então sofreu muito preconceito na infância?
AA: Muito, mas muito mesmo. Eu sempre fui afeminada, tinha traços femininos. Na escola, por exemplo, eu era excluída de grupos, o que me salvava era o fato de ser boa aluna, tirar boas notas, isso, por interesse, fazia com que me chamassem para grupos de trabalhos. Fora isso, eu era excluída de tudo.

DT: Sei que sua mãe era uma mulher de voz potente, que impressionava a todos quando cantava. Vem daí sua inspiração?
AA: A voz de minha mãe era uma coisa incrível, ela usava sua voz como um instrumento poderoso. Acredito em algo espiritual, ela cantava sem recurso nenhum, simplesmente soltava a voz e agradava a todos, nem precisava de microfone.

DT: Sua mãe, por sinal, era uma pessoa que te apoiava muito. Como é hoje sua relação com sua família?
AA: Minha mãe sempre me apoiou em tudo. Lembro que quando eu comecei a cantar profissionalmente, meu pai, que era pastor, não admitia que eu cantasse música secular. Ele também tinha vergonha que eu fosse cantar na igreja pelo fato de seu ser afeminada. Dai, eu combinava com minha mãe: eu pulava a janela, ia ensaiar, ela ia para a igreja e combinávamos a minha volta somente quando ela já estivesse chegando em casa. Entrávamos juntas e dava a entender que havíamos saído juntas também. Eu devo a ela a minha educação, o meu caráter e tudo que eu sou.

DT: Você se tornou uma pessoa conhecida, principalmente pelo advento das Redes Sociais. Já sofreu ataques transfóbicos em suas publicações?
AA: Sim, quando você começa a ter notoriedade os haters começam a aparecer. Falam da minha voz, dizem que quero ser clone de Ivete, comentários racistas, transfóbicos, mas isso não me abala. Vou lá e apago.

DT: Como você veio parar em Salvador?
AA: Em um período de minha vida, eu tive um pico de depressão e de ansiedade muito alto e não tinha com quem conversar, já havia perdido minha mãe. Primeiro pedi a uma prima, que mora em Catu, para morar com ela, o que veio a acontecer. Mas tem um detalhe: foi muito dez vezes pior, tinha um irmão da minha prima que começou a ser alvo de chacota, os amigos diziam que ela pegava a mulher trans que morava na casa dele. Tentou me agredir, mas não conseguiu, um dia jogou minhas roupas na rua, mas fui acolhido por uma tia. Comecei a trabalhar, montei um salão de beleza e logo em seguida comecei a cantar nos bares de Catu. Foi em uma dessas apresentações que conheci Tonho Matéria, que me chamou para cantar com ele no carnaval, aceitei o convite, foi sucesso e continuei cantando com Tonho por um período. Foi o inicio de minha jornada em Salvador.

DT: Depressão é algo sério. Qual foi o gatilho para você chegar a esse estado?
AA: Foram os ataques recebidos por parte de muitas pessoas, inclusive da minha família. Eu já não tinha mais a minha mãe, que me apoiava em tudo, e os ataques na rua eram constantes. Daí, sem ter com quem conversar, veio a depressão e por pouco eu nem estaria aqui hoje. Aqui em Salvador passei por dificuldades também, mas estou aqui com a missão de levar o meu canto mundo afora. Sempre tive a certeza que venceria, e estou na luta.

DT: Quais os artistas com quem você já dividiu o palco?
AA: Já tive a honra de cantar com alguns grandes artistas a exemplo de Del Feliz, Gilmelândia, Tonho Matéria, Neto Marques, Sarajane e Alexandre Guedes.

DT: Como você foi parar no Programa do Ratinho?
AA: Um produtor do programa me viu no instagram e fez o convite. A princípio, achei que era brincadeira, mas acabei parando no SBT. Levei minha arte e obtive nota máxima.

DT: O que podemos esperar de você daqui prá frente em termos artísticos?
AA: Tudo. Tenho projetos, não só de forró, sou uma cantora sem rótulos. Minha música de trabalho, Vontade de Você, composição minha, por exemplo, é um axé. Não quero ficar dentro de uma caixinha, se precisar cantar jazz, canto, se for MPB, canto … e por ai vai. Por sinal, minha música Vontade de Você é muito ouvida do Spotfy.

DT: E a campanha do Governo do Estado da Bahia que você participou recentemente?
AA: Foi indicação de meu nome por amigos, foi incrível, me deu grande visibilidade. Foi uma campanha chamada Março Mulher e eu ali, uma mulher trans fazendo parte daquele vídeo, acho que foi uma conquista para a causa.

DT: Sinto que você tem menos espaço do que merece aqui em Salvador. Acha que te excluem de ações LGBTQIAPN+?
AA: Sofro dois tipos de preconceito: primeiro por ser uma mulher trans e segundo, por cantar forró. A maioria dos espaços que ocupei até hoje não foram abertos pela comunidade LGBTQIAN+. Vou citar um exemplo: nunca fui chamada para uma parada LGBT, em contrapartida, nos eventos de forró, nos arraiás, sou presença constante.

DT: Você é uma das melhores cantoras que já ouvi. Já te disse isso. Como é a reação do público que não te conhece quando te ouve, a exemplo do que aconteceu no Forró da TV Pelourinho?
AA: As pessoas tem uma reação muito interessante, pois sou muita branda, aí, quando pego o microfone, elas ficam impressionadas. Já chegaram até a dizer que eu estava dublando, pois no palco me transformo. O palco é meu reduto, meu paraíso. Na TV Pelourinho, já tive a honra de cantar com Del Feliz, que foi incrível e participei do ForAll, o forró da TV Pelourinho ao lado de grandes artistas que foi incrível também.

DT: O que podemos esperar de você daqui prá frente em termos artísticos?
AA: Tudo, muita música e alegria, mas faço um apelo: deem mais voz a artistas LGBTS. Eu sou cantora, sou atriz e muitas vezes tenho que fazer mais dez vezes mais que outros artistas. Eu canto principalmente forró, um espaço extremamente preconceituoso, então, preciso de apoio sempre. Sou a primeira cantora trans de forró e isso não é por acaso.

*Carlos Leal -Jornalista formado pela Universidade Tiradentes, Especialista em Marketing Digital, autor do livro infanto-juvenil Histórias de Dona Miúda: a Raínha do Forró (Ed.Pinaúna), co-autor do livro Cem Anos de Dorival Caymmi: panoramas diversos, em parceria com a Professora Dra. Marilda Santanna. Atualmente colabora com artigos e textos para O Dois Terços e para o jornal A Tarde e escreve duas biografias: da cantora alagoana Clemilda e da sambista baiana Claudete Macêdo.