Romance de João Ubaldo Ribeiro recebe primeira adaptação para o teatro

Genilson Coutinho,
29/08/2011 | 10h08

O espetáculo Diário do Farol: onde as palavras se revelam inadequadas, baseado no livro Diário do Farol, de João Ubaldo Ribeiro, estreia nacionalmente, para imprensa e convidados no dia 01 de setembro, às 20 horas, no Espaço Cultural Barroquinha (Salvador/Bahia), onde cumpre temporada até 16 de outubro, de sexta a domingo. Contemplada pelo edital Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2010, a montagem dirigida por Fernanda Paquelet(Siricotico: uma comédia do Balacobaco/Capitães da Areia), homenageia os 70 anos do premiado escritor através de um dos seus mais complexos personagens: um faroleiro transgressor dos códigos morais e éticos.

Em sua casa, construção anexa ao farol situado na ilhota de Água Santa, um ex-padre de 60 anos, cujo nome não é revelado, vivido por Amarílio Sales(Policarpo Quaresma/ Jeremias, o Profeta da Chuva), coloca a plateia frente a frente com atos inescrupulosos que têm o intuito de confirmar a sua existência. Ao relembrar a infância na fazenda, o personagem descreve surras e humilhações cometidas pelo pai, interpretado por Daniel Becker (A Prostituta Respeitosa/Dias de Folia). A partir da morte da mãe, papel da atriz Nayara Homem (Casais pelo Buraco da Fechadura/Vira Lona, Lona Vira), ele passa a ouvir a voz materna, sussurrando-lhe vingança. Mandado para o seminário, elepassa a criar intrigas e prestar favores sexuais para sobreviver no ambiente permeado de corrupção e, assim, alcançar seus objetivos.

Quando conclui os estudos religiosos, ele é enviado à paróquia de Praia Grande como padre e começa a se relacionar sexualmente com as noivas da cidade, dentre elas a jovem esquerdista Maria Helena, representada por Tatiane Carcanholo (Guilda/Viva o Povo Brasileiro), que rejeita seus apelos amorosos. Desprezado e com desejo de ir à forra, ele se infiltra, durante a Ditadura Militar, num grupo subversivo para encontrá-la. Ao entrar nesse universo como delator, descobre o prazer nas torturas. Considerando-se acima do bem e do mal, o ex-padre espalha um rastro de destruição e não poupa ninguém para fazer valer a sua vontade.

Apesar das camadas dramáticas e de toda a vilania do faroleiro, a diretora afirma que não é a falta de limites dele o que mais a instiga a construir o trabalho, mas, sim, as condições ideais encontradas por ele nas organizações públicas e religiosas para exercer seu sadismo. “O personagem, dentro da Igreja e no Governo da época da ditadura militar, consegue fazer o que quer, sem nenhum freio, pois as intuições o protegem”, revela Paquelet.

Idealizador do projeto e adaptador do texto, Amarílio concorda com esse ponto de vista da diretora e revela que a ideia de transpor para os palcos a obra de João Ubaldo Ribeiro surgiu da observação cotidiana da quantidade de notícias veiculadas nos meios de comunicação sobre atos extremados de violência. “São imensos os interesses da sociedade e a exposição pela imprensa, desses acontecimentos, que nos causam reações instintivas, provocando julgamento imediato”, afirma Amarílio, ganhador do Prêmio Braskem de Teatro, na categoria Melhor Ator, pela interpretação da matriarca de A Casa de Bernarda Alba. De acordo com ele, o assassino que cada pessoa carrega no íntimo se revela nesses momentos, quando a mídia explora à exaustão casos como os de Guilherme de Pádua e Paula Tomaz, Suzana Von Richttofen e os irmãos Cravinhos, e Wellington Menezes de Oliveira, o atirador de Realengo.

Processo técnico. A peça, que discute questões como relações sociais e distúrbios de comportamento, transcorre em três planos: presente, memória e alucinação, entrecruzados para contar a história deste homem atroz. Paquelet, responsável também pela concepção de luz, explica que a platéia percebe claramente as mudanças de cena através da iluminação: no primeiro, ocorrem os relatos e suas reflexões sobre a vida; a luz tem inspiração no luar. No campo da memória, o faroleiro revive o passado ao relembrar a vida na fazenda, a convivência familiar, o internato e a paixão por Maria Helena; então a escolha foi criar uma atmosfera com coloração amarelada, remetendo à luz de velas. No plano do devaneio, onde o personagem conversa com a mãe morta, ela optou por uma iluminação bastante fria e intensificada no tom de azul.

Atentos a cada detalhe do enredo, o idealizador do projeto e a diretora escolheram apresentar o Diário do Farol no Espaço Cultural Barroquinha porque antes da reforma, a construção abrigava as ruínas de uma igreja secular e o narrador é alguém que exerceu o sacerdócio cristão. Outras simbologias estão presentes nos artefatos cenográficos, retratando lembranças afetivas dele, e no ambiente cênico, em forma de cruz, que representa o peso que esse homem carrega.

O figurino dos personagens, elaborado a quatro mãos, pelos designers de moda Daniel Moraes e Leila Eva Machado, traz inspiração nas imagens suscitadas a partir das histórias contadas pelo faroleiro. Como algumas indumentárias passariam pelo processo de envelhecimento, a dupla aproveitou uma viagem feita à Alemanha e optou por comprar parte dos trajes em brechós berlinenses, ajustados nos corpos dos intérpretes quando chegaram a Salvador. As demais roupas foram criadas exclusivamente para a peça, como o vestido florido de Maria Helena e o rendado em tom terroso da mãe.

Em sua primeira trilha sonora composta para teatro, o músico Alex Mesquita se apoiou na obra adaptada de Ubaldo e nas conversas com a encenadora. “Acho que a chave é produzir algo que corrobore com o que está sendo dito, criando um ambiente acústico e sônico, que transporte os atores e o público à realidade imaginária”, explica o compositor, que em 22 anos de carreira já trabalhou com nomes de peso, tais como Carlinhos Brown, Margareth Menezes, Daniela Mercury e Roberto Mendes.

Laboratório. Para arquitetar o Diário do Farol: onde as palavras se revelam inadequadas e entender a conduta do ex-padre, a diretora e o elenco realizaram ciclos de leituras dramáticas da peça, acompanhadas de debates com psicólogos, psiquiatras, psicanalistas e assistentes sociais. Nesses encontros, diante das inúmeras hipóteses levantadas, os atores aproveitaram as conversas para construir seus personagens e Paquelet definiu o perfil do protagonista. No ponto de vista dela, pelas características existentes no livro, o personagem pode ser psicopata, esquizofrênico ou psicótico, devido à licença poética do escritor. “Depois de Édipo, a psicanálise não analisa mais personagens de ficção dada a liberdade que eles têm de ser o que quiserem. Acaba que o diagnóstico fica comprometido” ─ esclarece a diretora, que aproveitava esses encontros e bate-papos para esboçar cenas da peça e definir os rumos da encenação.

Ao longo de três meses de preparo do espetáculo, outras leituras foram feitas, na sede da Quatro Produções Artísticas e na Livraria Cultura, para que um público heterogêneo, formado por médicos, artistas, jornalistas, donas de casa e estudantes também pudesse opinar sobre o texto e dar sua contribuição. Filmes e livros foram utilizados pela diretora: do cinema ela cita A Ilha do Medo, suspense de Martin Scorsese; Onde os Fracos Não Têm Vez, drama premiado dos irmãos Coen, e o romance de época O Nome da Rosa, pela direção deJean Jacques Annaud. As inspirações nas letras vieram de Mentes Perigosas: o psicopata mora ao lado, da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva e Serial Killers: made in Brasil, da especialista em criminologia Ilana Casoy.

Programação complementar. Com o intuito de aproximar ainda mais o público baiano da obra de João Ubaldo Ribeiro, a Quatro Produções Artísticas e a EBS Produções Culturais, realizadores da peça, em parceria com a Editora Objetiva, montaram a exposição interativa O Farol de Cada Um, composta por todos os livros, tanto adulto quanto infantil, escritor itaparicano e painéis com dados biográficos. A mostra contempla, também, fotos de todo o processo de montagem da peça, das leituras dramáticas aos ensaios, passando pelas reuniões de figurino e maquiagem, momentos registrados pelo trio de fotógrafos Alexandre Moreira, Nilson Rocha e Ricardo Konká. Finalizadas as apresentações em Salvador, Diário do Farol: onde as palavras se revelam inadequadascumpre temporada em São Paulo, a convite do produtor cultural baiano Erlon Bispo, no primeiro semestre do próximo ano, no Teatro Itália.

 

Serviço da peça:

O quê: Diário do Farol: onde as palavras se revelam inadequadas

Avant Première: 01/09 – sessão especial para a imprensa e convidados

Quando: 02/09 até 16/10; temporada de sexta a domingo

Horário: 20 horas

Onde: Espaço Cultural Barroquinha (Praça Castro Alves , s/nº – Barroquinha,acesso pela lateral do Espaço Unibanco)

Ingressos: R$20 (inteira), R$10 (meia)

Classificação: 18 anos

Informações: (71) 3498 6728

Serviço da exposição:

O quêO Farol de Cada Um

Quando: 24/08 a 16/10;

Visitação: segunda a sexta: 9h às 18h

Sábado e domingo: 14h às 20h.

Onde: Espaço Cultural Barroquinha (Praça Castro Alves , s/nº – Barroquinha, acesso pela lateral do Espaço Unibanco)

Entrada gratuita

Classificação: livre

Informações: (71) 3498 6728

Foto: Reprodução