“Quero colocar peitos de silicone. Mas não vou mexer em nada lá embaixo”, diz cartunista Laerte

Genilson Coutinho,
26/02/2013 | 14h02

Marilia Coutinho, 49, irmã caçula do cartunista Laerte, gosta de uma ideia do autor de “Alice no País das Maravilhas”, o inglês Lewis Carroll (1832-1898). “Ele dizia que as pessoas não deveriam depositar suas esperanças de felicidade em algo que podem perder. E veja: você nunca vai perder uma barra de aço.”

Bióloga com pós-doutorado em estudos sociais da ciência e autora de dois livros (“Powerlifting: De Volta ao Básico” e “Estética e Saúde: A Linha Tênue entre Beleza e Saúde”, ambos lançados em 2011), Marilia faz levantamento de peso e é recordista mundial de agachamento “raw” (sem equipamentos). Na categoria até 60 kg, ela, com 1,52m de altura, foi a única mulher capaz de levantar com 175 kg sobre os ombros.

Seu irmão, Laerte, 61, criador de tiras publicadas pela “Ilustrada” (Folha de S. Paulo), além de colaborações para os suplementos “Folhinha” e “Equilíbrio”, veste-se com roupas femininas desde 2009 e adotou o nome Sônia. “Agora quero colocar peitos de silicone”, afirma. “Mas não vou mexer em nada lá embaixo.” A ideia de Laerte/Sônia não é ter duas personalidades nem dois sexos (só dois nomes). O que interessa a ele é acabar com as imposições do que é um homem ou uma mulher. Ele não quer ser nem um nem outro, mas sim um transgênero. Ou “transgênera”, como prefere, em mais uma subversão (já que o termo é usado no masculino).

Os dois irmãos são próximos. “Nossos caminhos são diferentes, mas lidamos com a mesma realidade. E entramos em atrito com as regras desse jogo”, afirma Marília. Segundo a caçula, o que está em questão é mais do que a realização pessoal, mas uma luta contra os estereótipos. “Reivindicamos o direito de ser dono do próprio corpo. Eu quero ser forte, rápida, flexível. Não importa o aparelho genital com que nasci”, diz Marilia.

 

SEXO E POLÍTICA

A ligação entre os dois vai além da familiar. “Temos reflexões tão parecidas que já são quase uma coautoria”, diz ela. Ao todo, são quatro os irmãos Coutinho. O mais velho, Mauro, 63, é empresário. Entre o cartunista e a levantadora de peso tem Helena, 59, fotógrafa.

As buscas de Laerte e Marilia começaram na política. Os dois fizeram parte do Partido Comunista na década de 1970 e a militância deixou marcas profundas em ambos. Marilia tinha 15 anos e praticava esgrima quando entrou no partido, em 1978. Chegou a ser campeã brasileira aos 14 anos, mas abandonou o esporte quando começou a levar a militância mais a sério. “No Partidão, achavam que aquilo era um desvio pequeno-burguês. Aí, abandonei o esporte”, conta.

No ano seguinte, entrou para a Convergência Socialista, hoje PSTU. Suas primeiras experiências sexuais aconteceram com líderes partidários das duas organizações. “Sexo fazia parte da política”, diz. “Eu estava despertando para a sexualidade e, de repente, tinha que transar para fazer parte do grupo”, conta. “Depois, fui estuprada, no PSTU, na Convergência. Fui expropriada de mim mesma.”

 

Laerte só soube que a irmã tinha passado por problemas no partido muitos anos depois. “Eu também passei por constrangimentos, mas com ela foi uma coisa violentíssima”, afirma. O cartunista, hoje um bissexual assumido, diz ter bloqueado seu lado homossexual. Em uma campanha para eleições sindicais na década de 1980, chegou a desenhar um personagem da oposição como um gigante gay, usando a homofobia como arma política.

“Fazer parte daquele movimento foi fundamental para o meu processo criativo, mas sufoquei uma parte de mim para viver como o ‘tio Stálin’ achava certo”, diz, referindo-se ao ditador soviético Joseph Stálin (1878-1953), que perseguiu os homossexuais durante seu governo na extinta União Soviética, dos anos 1920 até a sua morte.

Laerte militou no Partidão entre 1973 e 1985. Largou quando percebeu “um movimento cultural, de quadrinhos, que era o que queria fazer”. Marilia saiu da militância em 1981 e, no mesmo ano, recebeu o diagnóstico de psicose maníaco-depressiva. Chegou a tomar 11 remédios ao mesmo tempo. Envolveu-se com drogas, “maconha, ácido, álcool, o que caía na minha mão”, passou por “desastres conjugais” e um “parênteses de felicidade”: o nascimento da filha Melina, em 1989. Em 2005, tentou o suicídio.

Ao se recuperar, tomou duas decisões: abandonou as drogas – as lícitas e ilícitas – e começou a levantar peso. Apesar de estável, a atleta ainda sente a depressão à espreita. “Me disseram que eu viveria no máximo cinco anos sem remédios. Isso não sai fácil da cabeça.”

Laerte também passou por um grande trauma em 2005: a perda de um dos seus três filhos, Diogo, de 22 anos, que foi vítima em um acidente de carro durante o Carnaval. Desde então, batalha para se reencontrar profissionalmente: “Gostaria de estar surfando numa técnica que eu já tenho. E acontece o contrário”.

Oito anos depois de seus piores momentos, Laerte e Marilia ainda enfrentam preconceitos. Mas, segundo ele, manter a exposição de suas vidas “pode ser importante para outras pessoas”. E Marilia completa: “É possível optar pela felicidade”.

Fonte: Folha de São paulo