Por que Kaysar mereceria mais a nossa empatia do que Gleici?
A leitura que faço da sociedade é sempre mediada pelos conflitos e relações de gênero, raça, classe, sexualidade, geração, entre outros marcadores sociais e identitários que posicionam o nosso lugar no mundo. Nesse sentindo, não consigo olhar para Gleici e Kaysar sem que as lentes que coloco sobre eles sejam mediadas pelas opressões e privilégios que lhes atravessam. Não acho que o BBB seja um programa para premiar quem mais precisa ou quem tem mais necessidade, o programa, como boa parte dos Realitys Shows, tem como objetivo tornar vencedor aquele ou aquela que protagonizou a edição e mais simpatizou o público e agradou a audiência, mesmo que isso tenha se dado pelo contexto social onde os mesmos se inserem fora do programa.
Entretanto, com o avançar do programa, o favoritismo de Gleici e Kaysar, apontados como protagonistas da edição, tem levantado o debate entre as torcidas de que quem seria o que precisa mais do prêmio. Acho péssimo que o programa tenho nos imposto essa decisão: “E aí, de quem você tem mais pena?!”. Porém, por mais péssima que seja essa pergunta, a resposta quase que natural para ela tem me provocado as inquietações que trago nesse texto.
Porque Kaysar mereceria mais a nossa empatia do que Gleici? Muitos, automaticamente, responderiam: “Porque Kaysar é um refugiado sírio, a Síria está em Guerra desde 2011 e ele quer tirar os pais de lá com o prêmio do programa”. Isso seria então motivo suficiente para fazer de Kaysar o vencedor do programa.
O primeiro fato, que não há como negar e com o qual eu também me sensibilizo, é que a Síria está em guerra desde 2011, de lá pra cá cerca de 511 mil pessoas foram mortas e 5,6 milhões estão refugiadas. Os números da guerra na Síria são assustadores, as condições de vida das pessoas na região de Alepo, onde vivem os pais de Kaysar, são alarmantes, e agora, com a entrada dos Estados Unidos e a internacionalização das forças em confronto, o conflito pode se estender, já havendo quem fale em uma possível terceira guerra mundial.
O favoritismo de Kaysar, muito mais do que por sua personalidade e desenvolvimento dentro do programa, tem se dado devido o seu maior objetivo caso ganhe o prêmio: tirar seus pais da zona de guerra e proporcionar para eles a vida digna que outrora eles já lhes proporcionaram. Fazer Kaysar vencedor seria um final feliz para essa história triste, que cada dia ganha um novo capítulo mais assustador.
A única coisa que não fecha pra mim nessa conta, é que boa parte das pessoas que consideram a história e as condições sociais dos pais de Kaysar, debocham e ignoram completamente o contexto e a situação social onde está inserida Gleici, que também deseja retirar a família de uma zona de guerra que já eliminou a vida de seu pai e tira a vida de um jovem negro a cada 23 minutos no Brasil.
Nós também vivemos em uma guerra. As periferias do Brasil vivem em uma zona de guerra, mas parecemos estar completamente insensíveis a ela. Segundo dados apontados pelo mapa da violência, morrem no Brasil cerca de 60 mil pessoas assassinadas por ano. Nos últimos sete anos, se fizermos um comparativo de 2011 a 2018, o Brasil registra o alarmante número de quase 500 mil homicídios, sendo que 71% desses são de pessoas negras.
Em 2017, quando publicado, o atlas da violência afirmava enfaticamente: “Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra”. Não muito longe disso, entre as mulheres negras, o índice de mortalidade subiu 22%.
Além de viver em uma das zonas onde esses assassinatos frequentemente acontecem, Geici reside na 6ª pior capital para se viver no Brasil. Gleici faz parte das vítimas da guerra que diariamente é alimentada nesse país e que passa completamente despercebida aos olhos de boa parte da população. Enquanto mulher, negra e periférica, as Gleicis do Brasil estão muito propensas a serem também assassinadas.também perderem suas vidas em uma zona de guerra.
A questão que fica posta para mim é que enquanto as dores de Kaysar são alvo de grande comoção popular, as mazelas que afligem Gleici e sua família são completamente desconsideradas por esse discurso, que não raro, responsabiliza as Gleicis do nosso país pela violência e as péssimas condições de vida em que se encontram. As mesmas pessoas que se assustam com as 500 mil mortes na guerra da Síria, pouco se importam com os nossos quase 500 mil mortos e com o assassinato de jovens negros, que a cada 23 minutos acontece no Brasil.
Concordo com a jornalista Maíra Azevedo quando em um post em sua página no Facebook ela diz: “dor é algo extremamente subjetivo, mas seguimos com a síndrome de achar que o que vem de fora é sempre melhor, até na hora de sofrer”. As nossas tragédias parecem não sensibilizar tanto a audiência, talvez seja porque estamos tão acostumados a vê-las diariamente, que perdemos a capacidade de indignação e comoção.
Entre Gleici E Kaysar, temos no fundo dessa disputa, uma mulher negra periférica versus um homem branco estrangeiro, e nós, que vivemos aqui, sabemos muito bem que a solidariedade sempre foi seletiva. Temos zonas de guerra bem do nosso lado, mas os corpos negros, mortos ou vivos, continuam não importando tanto.
*Elder Luan – Graduado em História e doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismo.