Por que o jornalismo prefere o espetáculo? Por João Barreto
Perguntaram-me na última semana porque o jornalismo preferiu cobrir a Parada Gay de São Paulo (e demais manifestações populares de natureza política) como um superespetáculo colorido e não como uma manifestação política. Fiz um levantamento (via Google) da cobertura dos principais veículos à procura de termos fundamentais e palavras-chave e as informações da cobertura da Parada Gay de São Paulo que mais saltam aos olhos são: “apesar da chuva, pessoas se reuniram”, “número de ocorrências policiais”, “quantos trios iam se apresentar”, “a celebração da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre união estável”, “a requisição da criminalização da homofobia pelo PL122”, “a disputa da religião versus direitos humanos”, “o kit anti-homofobia”, “a campanha anti HIV usando imagens de santos”, e “quantidade de pessoas que desfilaram”. Não tenho certeza, mas me parece que há um pouco de debate político aí apesar da busca jornalística por números, dados, certezas, pretos & brancos etc. Tenho para mim que não se pode culpar apenas o jornalismo. Vejamos o porquê abaixo. Para responder a esta pergunta temos que voltar ao século XIX.
O jornalismo é uma instituição social e, antes disso, também uma construção social cumprindo uma função: vigilância da sociedade e da esfera política. Esta função atribuída ao jornalismo corresponde ao auto-posicionamento do jornalismo nos parâmetros da objetividade, da racionalidade e da imparcialidade, que lhe garantiram historicamente respaldo para falar da sociedade e do campo político e assim atuar em ambos, seguindo os mais variados interesses.
Antes do início do século XIX, a objetividade nem era uma premissa jornalística. Ao contrário, esperava-se que o jornalismo assumisse um ponto de vista e não que se apresentasse como um relato neutro ou imparcial, assumindo uma posição na esfera de discussão pública tal como concebida na Europa após as Revoluções Burguesas e pós-iluminista. A imprensa era partidária e as notícias eram explicitamente um arena de debate público.
Quando o jornalismo se torna uma corporação, ele passa a ter necessidade de lucrar, como qualquer empresa. E, para lucrar, os anunciantes se tornaram necessários. O debate e a diferença foram substituídos pela objetividade e pela verdade e as notícias foram redefinidas como as informações importantes que as pessoas deveriam ter de modo que a democracia funcionasse. E por quem? A definição do que seria importante às pessoas não era feita pelas pessoas, mas entendida como auto-evidente. As forças econômicas que produziram jornais poderosos em diversas cidades ajudaram a promover esses novos valores como estratégia para conduzir os negócios, uma estratégia que deu certo até pelo menos o surgimento da internet e dos blogs, que nos ensinaram a duvidar das notícias. Lembrando que até hoje não existe jornal que não se pague via inserção publicitária, a exceção talvez de blogs independentes e motivados por boa vontade, fama & glória.
Uma definição de informação de cima pra baixo, afastada da vida cotidiana e da opinião explicitamente expressa, esconde a sua disciplinaridade sob noções de objetividade, responsabilidade e educação política. O que as pessoas deveriam saber para que uma democracia funcione adequadamente é um conceito que esconderia repressão e poder sob uma retórica liberalista.
Cumprindo o papel de vigilante, o jornalismo seria responsável pela constituição de uma agenda pública, pela disponibilização de uma forma de esfera pública mediatizada na qual seriam colocados em debate os diversos pontos de vista, expostos ao público. Essa estrutura permitiria mecanismos de prestação de contas do campo político para o público, o que funcionaria para construir e reafirmar o papel de serviço público no discurso jornalístico atual.
Acontece que os interesses vêm do povo, de onde emana a sociedade, e não dos editores, o que favoreceu o surgimento de práticas jornalísticas alternativas ao jornalismo “oficial” e “sério”. O desenvolvimento do capitalismo industrial destruiu o modo de vida no qual a cultura popular (“folk”) foi construída, ampliou distâncias entre classes sociais, trouxe a produção em série, alterou padrões de gosto e intensificou a secularização da sociedade. Foi então que começaram a pipocar as notícias de “interesse humano”.
As histórias de “interesse humano” muitas vezes enfatizavam uma noção de inexorabilidade sobrenatural, de perigos que espreitavam por toda parte do ambiente urbano moderno. Nascia o sensacionalismo no jornalismo. O “Newark Daily Advertiser” de 18 de maio de 1891 trazia por exemplo um artigo sobre a morte misteriosa de uma garota: “Não se sabe de onde veio a haste ou como ela recebeu força suficiente para causar o ferimento que causou não permanece um mistério. A criança estava brincando no jardim quando a haste, propelida por uma força invisível, atravessou os galhos de uma amoreira, penetrando o crânio da garotinha. A garotinha morreu em grande agonia esta manhã”. No ambiente moderno, de intenso desenvolvimento tecnológico, a morte poderia vir inexplicadamente.
O discurso racionalista iluminista não poderia funcionar sem que todos tivessem acesso pleno à educação de qualidade, o qual só os mais abastados poderiam ter. Assim se recorreu à sensibilidade e à emoção muito mais do que à razão para reportar as notícias. O jornalismo que se adequou à modernidade foi organizado de modo a permitir a emergência de novos princípios absolutos reguladores, no caso, forças e valores morais latentes em uma realidade moderna cada vez mais frágil e mutável pelos avanços científicos e tecnológicos e, cada vez mais dessacralizada. Lembrando que antes da Revolução Industrial, no Ocidente, quem regulava a cultura e até mesmo a educação era a Igreja Católica: a moral também vinha de cima. A dessacralização implicava na dissolução de laços sociais rígidos que uniam as pessoas, dando espaço para um regime individualista, que ao mesmo tempo em que enfatizava o indivíduo perante a sociedade, também lhe separava.
A moral deveria ser portanto individual e partilhada socialmente, mas nascida no indivíduo único, livre e racional. E assim estamos há dois séculos correndo atrás de uma moral humana, secular e… humanista, que contemple toda a escala de cinza e não apenas os pretos & brancos.
Ressaltar o espetáculo em detrimento do político é uma tendência antiga e representa tanto a necessidade de ressacralização do mundo quanto a percepção de como isso se tornou impossível. Então, respondendo à pergunta… Por que a cobertura das manifestações populares que têm agitado o Brasil após a Primavera Árabe tem sido tão superficial (à exceção de alguns poucos veículos de comunicação)?
De um lado, as rotinas de produção jornalística carecem de contextualização. Nós, jornalistas, desconhecemos o nosso passado e a história do surgimento dos veículos massivos. Nós, profissionais das redações, atendemos a interesses corporativos/empresariais e nós, povo, gostamos de ver espetáculo porque eles são, sem dúvida, mais seguros e menos angustiantes do que o debate político, de ideias. A culpa não pode ser de um segmento ou de outro, é de todos nós, que só descobrimos o sentimento republicano há cerca de 30 anos e que, até hoje, não nos sentimos donos do governo que elegemos