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PFDC pede ao CNJ mudanças em regras cartoriais para facilitar pessoas trans a alterarem nome e gênero em documentos

Genilson Coutinho,
22/03/2023 | 22h03
Arte: Comunicação/MPF

Sugestões para o aperfeiçoamento das regras que tratam da averbação da alteração do nome e do gênero de pessoa trans nos assentamentos de nascimento e casamento constantes no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) foram encaminhadas ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nesta terça-feira (21). As alterações propostas constam de nota técnica elaborada pelo Grupo de Trabalho (GT) População LGBTQIA+: Proteção de Direitos, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF).

Para a PFDC, as regras e os procedimentos estabelecidos no Provimento CNJ 73/2018, da Corregedoria Nacional de Justiça, dificultam o pleno exercício do direito das pessoas transexuais, não bináries ou intersexos. “Para que a pessoa trans altere o seu prenome é preciso seguir um burocrático procedimento, com alto custo financeiro com a obtenção de certidões e documentos que implicam gastos desproporcionais e injustificáveis para o propósito da norma”, destaca o documento.

Além da redução desses custos, a nota técnica sugere revisão do provimento com o propósito de adequá-lo à tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275 e à nova redação da Lei 14.382/2022 – Lei dos Registros Públicos (LRP).

O STF estabeleceu que a pessoa trans tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, e nada deve ser exigido além da manifestação de vontade do indivíduo. “Essa decisão prestigia os direitos da personalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana; permite uma nova visão sobre o tema; além de garantir a busca pela felicidade e a autodeterminação das pessoas trans”, afirmam os membros do MP brasileiro que assinam a nota, entre eles, o procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Alberto Vilhena.

Obstáculos – Editado para uniformizar os procedimentos dos cartórios sobre a questão da alteração do prenome e gênero, o Provimento CNJ 73/2018 estabelece as atribuições, os requisitos, as finalidades e as condições documentais para o exercício desse direito pela pessoa trans, a fim de adequá-los à sua identidade autopercebida.

Entre as disposições que impõem obstáculos à alteração do prenome, estão a apresentação de extensa lista de documentos e a comprovação de arquivamento do processo judicial cujo objeto seja a alteração pretendida.

De acordo com a Nota Técnica PFDC 1/2023, “tais exigências têm o potencial de inviabilizar os avanços conquistados pelas pessoas trans com a decisão do STF. A quantidade exacerbada de documentos exigidos, além de incompatível com a tese firmada pelo STF na ADI 4.275, burocratiza e impõe custos indevidos às pessoas interessadas que, muitas vezes, sofrem com a vulnerabilidade econômica”.

Outro dispositivo que dificulta o exercício do direto pela pessoa trans é o que faculta a instrução com laudo médico e parecer psicológico que atestem a transexualidade/travestilidade. “O STF deixa claro que a afirmação da identidade de gênero diversa daquela designada ao nascer será feita por autoidentificação firmada em declaração escrita de sua vontade, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade”, assevera o documento.

Pedidos – A PFDC entende que o Provimento CNJ 73/2018 merece ser modificado para prever a isenção de taxas para as pessoas autodeclaradas travestis, mulheres transexuais, homens trans, pessoas transmasculinas, não binárias ou intersexo no ato da primeira retificação pela via administrativa do prenome e do gênero, incluindo a isenção para emissão da nova certidão de registro civil.

Mesmo que comprovem ser beneficiários da assistência jurídica gratuita por serem hipossuficientes, diversas pessoas trans não conseguem a retificação. Em São Paulo, por exemplo, os gastos podem chegar a aproximadamente R$ 500,00, conforme informação prestada pela Defensoria Pública daquele estado.

Além disso, o provimento deve garantir a retificação do prenome e do gênero de pessoas trans menores de 18 anos, a partir do atendimento de alguns critérios. A nota técnica sugere que, aos interessados entre 14 e 16 anos, a retificação possa ser solicitada, pela via administrativa, pelos pais ou responsáveis, com o consentimento do menor. Entre 16 e 18 anos, a proposta dos procuradores é que a pessoa trans interessada assine junto com os pais ou responsáveis o pedido de retificação pela via administrativa. Já para os menores de 14 anos a retificação deve se dar exclusivamente pela via judicial, a pedido dos pais ou responsáveis, devendo ser apresentado o consentimento dos seus filhos. Eles pedem que constem ainda no registro os termos “não binárie” e “diverso” como opções para qual será feita a retificação do gênero, além dos termos masculino e feminino já garantidos.

A PFDC pede ao CNJ a revogação, em caráter definitivo, de diversos dispositivos do provimento e a retirada da necessidade de autorização de terceiros, incluindo cônjuges ou ex-cônjuges para a retificação das certidões que constem o nome anterior da pessoa transgênero, intersexo ou não-binária.

Para facilitar o pedido, a nota requer a modificação das regras cartoriais para que seja prevista a possibilidade de realização, por via eletrônica, do requerimento de retificação administrativa do prenome e do gênero. Também se pede a previsão de que os cartórios sejam expressamente proibidos de exigirem laudos ou pareceres médicos ou psicológicos que atestem a transexualidade, travestilidade, intersexualidade ou a realização de cirurgias ou qualquer modificação corporal.

“Vencer a transfobia institucional exige que se adotem políticas públicas, ações estatais e procedimentos que simplifiquem e garantam o acesso pleno das pessoas trans aos serviços públicos sem barreiras estigmatizantes. Somente o pleno reconhecimento pelo Estado do direito à alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento, em respeito a plena adequação à autopercepção individual, permitirá a satisfação e a busca pela felicidade da pessoa transgênero, além de contribuir significativamente para minimizar outras barreiras por elas já enfrentadas no cotidiano”, consta da nota.

Além de Vilhena, o documento é assinado pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão no Acre, Lucas Costa Almeida Dias (coordenador do GT); o procurador regional da República Paulo Gilberto Cogo Leivas; os procuradores da República Nathália Mariel Ferreira de Souza e Paulo Roberto Sampaio Anchieta Santiago; e os promotores de Justiça André Luiz de Araújo (MP/PR) e Murilo Hamati Gonçalves (MP/MS).


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