O pai que deu à luz

Genilson Coutinho,
20/12/2013 | 19h12

Um transexual de aparência masculina deu à luz uma menina na Argentina. A estranheza provocada pela notícia é compreensível. De barba e camisa rosa na foto desta página, Alexis Taborda exibe a gravidez. Quem acaricia a barriga, como nas imagens tradicionais de álbum de família, é a mulher dele, Karen Bruselario. A gestação não é resultado de intervenção artificial. É natureza pura.

Alexis e Karen são considerados transexuais, mas conservaram os aparelhos reprodutores com os quais nasceram. Isso permitiu que Alexis gerasse a filha em seu útero. A menina Génesis Evangelina nasceu com mais de quatro quilos, segundo reportagem da agência EFE.

Alexis é mãe e pai. Karen é pai e mãe.

No Twitter, um brasileiro expressou surpresa. “Realmente, vou viver bastante e não vou ver tudo”. Felizmente, eu diria. Novos arranjos familiares surgiram nas últimas décadas, mas ainda há muito para ver, transformar e respeitar. A estranheza é compreensível. O desrespeito é inaceitável.

Além de curiosidade, o nascimento de Génesis suscita reflexão. É uma história que embaralha e aproxima os papéis de pai e mãe. Se a fronteira entre eles tornou-se tênue mesmo entre casais biologicamente e socialmente heterossexuais, nessa família argentina a divisão será inexistente – e, provavelmente, irrelevante.

Afinal, quem é o pai e quem é a mãe?

Poderíamos afirmar que o pai é Karen (dele saiu o espermatozóide) e a mãe é Alexis (dela veio o óvulo). Suspeito que essa também seria uma definição capenga. Somos muito mais complexos que nossas células germinativas e nossa genitália.

De todas as variantes da sexualidade humana, talvez nenhuma seja tão incompreendida quanto a transexualidade. Faz pouco tempo que a ciência médica começou a se interessar pelo tema.

Transexuais nascem com cromossomos, genitais e hormônios de um sexo, mas têm a convicção de pertencer ao gênero oposto. Segundo a ciência, durante a gestação ocorre uma divergência entre a programação sexual do cérebro e os genitais.

Há alguns anos, o pesquisador Eric Vilain, da Universidade da Califórnia, reafirmou a tese de que o sexo do embrião é determinado pelo cérebro – muito antes do desenvolvimento de testículos ou ovários.

Num estudo com camundongos, verificou-se que alguns genes tramam a formação do cérebro feminino ou masculino antes que o corpo comece a ser banhado por hormônios de um sexo ou do outro.

Um erro nessa troca de mensagens provoca o resultado perturbador relatado por muitos transexuais: cabeça de mulher aprisionada em corpo de homem, ou vice-versa.

Em 1995, o Instituto do Cérebro da Holanda, fez uma importante descoberta. Depois de dissecar o encéfalo de seis transexuais nascidas com genitália masculina, os pesquisadores descobriram uma peculiaridade na região do cérebro que regula o comportamento de gênero. A área era menor que a dos homens e idêntica à das mulheres.

O estado de incongruência entre cérebro e corpo costuma ser fonte de sofrimento crônico. Daí a necessidade de tratamentos para adequar um ao outro. Com a administração de hormônios, é possível desenvolver características do novo sexo e mascarar as do sexo original. Por exemplo, barba e pelos nos transexuais mulher-para-homem e mamas desenvolvidas nas transexuais homem-para-mulher.

A cirurgia para transformação do sexo masculino em feminino e vice-versa é um importante recurso de readequação, mas nem sempre os transexuais têm acesso a ela ou estão dispostos a se submeter ao procedimento.

Em novembro, Alexis e Karen se casaram no civil na cidade de Victoria, na província de Entre Ríos. O padre católico Raúl Benedetti abençoou o ventre de Alexis. Todo o dia 15 de cada mês, há uma cerimônia de benção às grávidas. “Uma vez eu os convidei e eles vieram”, disse o padre Benedetti à agência Efe.

Na ocasião, o padre explicou que não poderia casar a dupla pela Igreja. “Há uma contradição entre o documento e a pessoa. Se eles se quisessem casar com o nome de batismo e aceitar que o papai é o homem e a mamãe é a mulher, não haveria problema.”

Benedetti afirmou não ver problema na gravidez. Decidiu benzer o casal porque “é uma coisa normal e comum como tantos outros” casos.

Sou otimista. Acredito que demonstrações de respeito como essa podem inspirar as pessoas a repensar preconceitos de toda ordem – ainda tão presentes na sociedade brasileira.

Se um bebê pode nascer do útero de alguém que tem aparência e documentos masculinos e se até um padre abençoa essa gestação, nada mais atrasado e deplorável que odiar o negro, desprezar o índio e rotular como dondocas as mulheres brancas, de cabelo liso.

Está cada vez mais difícil classificar pessoas pela aparência. Ainda bem.

Texto Publicado originalmente por Cristiane Segatto no site da Revista Época desta sexta-feira 20 de dezembro de 2013

Sobre Cristiane Segatto

Cristiane Segatto

Repórter especial de ÉPOCA

Escreve sobre medicina há 18 anos. Ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo, entre eles o ESSO de informação científica em 2012. Ouça os comentários dela na Rádio CBN. Todas as segundas, às 15h30, ao vivo.

cristianes@edglobo.com.br