Sala VIP

‘Não é sobre a política partidária, mas sobre a política do direito à vida’, diz Thiffany Odara

Carlos Leal,
25/03/2023 | 10h03
Foto: Arquivo Pessoal

Yalorixá do Terreiro Oya Matamba, em Lauro de Freitas (BA), Pedagoga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEDUC – UNEB), especialista em Gênero, Raça e Sexualidade, atual vice-presidenta do Conselho de Mulheres e Conselheira do Conselho Municipal de Promoção de Igualdade Racial (CMPIR), ambos em Lauro de Freitas – BA, além de assumir diversas outras atividades, Thiffany Odara é a primeira Mulher trans a concorrer ao cargo de Ouvidora Externa Cidadã da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Nesse bate-papo com Carlos Leal para o Dois Terços, Thiffany fala de preconceito, sua luta, seus projetos e o motivo que a levou a concorrer ao cargo

DOIS TERÇOS: Thiffany, você, além de ser uma ativista representante da comunidade LGBTQIAPN+, também é Yalorixá do Terreiro Oya Matamba, em Lauro de Freitas. Agora, no dia 10 de março, tanto a comunidade LGBTQIAPN+ quanto o movimento de mulheres negras de comunidades religiosas do axé lançaram seu nome para concorrer ao cargo de Ouvidora Geral da Ouvidoria Externa Cidadã da Defensoria pública do Estado. O que isso representa para você?

THIFFANY ODARA: Para mim, é um esforço coletivo dos movimentos essa necessidade de ocupação de espaços que são estratégicos e que tenham um grande fortalecimento na luta coletiva. Isso reflete muito na minha atuação, que é coletiva. Eu lido com esses movimentos de mulheres, população em situação de rua, pessoas vivendo com HIV/AIDS, profissionais do sexo, o movimento LGBTQIAPN+ e a população negra. É um trabalho que inclui, dentre outras coisas, a luta pela moradia, pela redução de danos, pelo desencarceramento em massa, dentre tantas outras pautas. Elas contribuem para aquilo que eu sou, para aquilo que atravessa o meu corpo. As lideranças, instituições e movimentos sociais tiveram o entendimento que esse espaço, que sempre foi ocupado por mulheres CIS, precisa neste momento ter a perspectiva de uma mulher trans e negra, que já está na luta coletiva e que tem contribuído de forma significativa para a construção de agendas importantes.

DT: Você é a primeira mulher trans a concorrer ao cargo, sabemos que ainda há muito a ser conquistado, mas você já enxerga essa candidatura como um grande avanço?

TO: Eu enxergo como um avanço e também como uma denúncia, como uma forma de entendermos como incidir politicamente com mais contundência em alguns espaços que nos foi tirado. Os espaços que as mulheres e homens trans, travestis e pessoas não binárias não conseguem ocupar são espaços que nos foram tirados e que nos foram negados. É por isso que a gente precisa fazer isso, principalmente aqui na Bahia. Observe o cenário nacional, parlamentares trans, parlamentares estaduais, inclusive, aqui no estado vizinho ao nosso, em Sergipe, onde temos a deputada estadual Linda Brasil. Temos a deputada estadual Robeyoncé, em Pernambuco, que teve uma votação expressiva. E na Bahia? Então, não é sobre a política partidária, mas sobre a política do direito à vida. Ainda existem espaços que precisamos romper com essa transfobia que é muito velada, mas é bastante efetiva, apesar de avanços significativos que tivemos nesta eleição nacional, por exemplo.

DT: Você é a atual vice-presidenta do Conselho de Mulheres e Conselheira do Conselho Municipal de Promoção e Igualdade Racial (CUMPIR), ambos em Lauro de Freitas. Sendo mulher trans, você sentiu algum preconceito da população por ocupar os referidos cargos?

TO: Importante dizer que também faço parte da Intersetorial Saúde de Mulheres (SISMU) Lauro de Freitas,e também fui conselheira Estadual de Política para as Mulheres. Estive à frente de um equipamento do estado enquanto educadora social e reparadora de danos o CPDD LGBT Bahia, na sua primeira gestão, onde também pude levar um pouco da interiorização da política LGBTQIAPN+ para os 417 municípios da Bahia. Então, nessa caminhada percebo sim, o preconceito nesses espaços, a discriminação, os olhares, a forma de me tratar e conduzir determinadas situações. As pessoas ainda não conseguem normalizar ou compreender a ocupação de mulheres trans e travestis em alguns determinados espaços de poder e conhecimento.

DT: Lembrando que você também é membra do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras (FONATRANS). Estamos em 2023, você vê algum avanço com relação ao preconceito às travestis por parte da nossa sociedade?

TO: Falando na sociedade, quando os movimentos sociais decidiram lançar meu nome para o cargo de Ouvidora, podemos dizer que politicamente já é um avanço. Afinal, os movimentos começaram a se mobilizar de forma coletiva para a ocupação de um grupo que ainda segue invisibilizado, segue rechaçado pela estrutura Cisgênera racista. Falando de mim, que sou uma mulher trans, Yalorixá, negra, mãe, que mora na periferia, existem vários atravessamentos, não só da transfobia. Trago em mim as marcas do racismo religioso e das violências por conta do capitalismo. Todos são fatores que me levariam a exclusão, mas ando e seguirei de cabeça erguida.

DT: Na sua história de militância e nos movimentos sociais, quais projetos já você já desenvolveu voltados para a educação, empregabilidade e redução de danos principalmente para a comunidade LGBTQIAPN+?

TO: Já realizei diversos projetos, como rodas de conversa, a publicação do meu livro Pedagogia da Desobediência: Travestilizando a Educação, que serve como referencial teórico, metodológico para se pensar uma educação transgressora, uma pedagogia da desobediência. Destaco também o Corre LGBT, projeto que em 2019 mobilizou mais de 200 pessoas, em que fizemos uma mobilização em rede para conseguir empregabilidade e renda, inserindo a comunidade LGBTQIAPN+ no mercado de trabalho. Essa ação foi realizada através de várias oficinas e orientações educacionais, além de mobilização voltadas para a Educação, com inscrição no ENSEJA e no ICTA. Enfim, o Corre LGBT foi o carro chefe e para além disso, foi a interiorização da política. E isso foi muito importante em diversas cidades do interior do estado. Fico feliz em saber que eu participei desse projeto. Pensando no que eu posso contribuir hoje para a população, digo que estou na luta trabalhando na assessoria do mandato das Pretas por Salvador como Assessora Parlamentar, onde debato políticas públicas pensando na população soteropolitana, fazendo articulações e tendo esse lugar de discutir políticas públicas que possam beneficiar aos grupos que são historicamente vulnerabilizados.

DT: Você também é Educadora e Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação em Contemporaneidade (PPGEDUC – UNEB). Enquanto Educadora, o que você acha que está faltando para amenizar o sofrimento principalmente das crianças LGBTQIAPN+ nas escolas?

TO: Colocar um currículo que se debruce a pensar a diversidade, que rompa com os currículos ocultos, que são os promotores das violações de direitos. A Educação brasileira tem que ser pensada e gerenciada por educadores. Pensar na Educação para a comunidade LGBTQIAPN+ é também pensar na educação para os grupos vulnerabilizados pela sociedade: indígenas, pessoas negras, mulheres… mas e a nossa educação? Ela precisa pensar também na reformulação do currículo da pedagogia e na atuação dos(as) pedagogos(as), que são os(as) engenheiros(as) da educação, são eles(as) os(as) responsáveis por pensar a educação e que precisam ocupar os espaços de decisão para a Educação voltada para a inclusão social.

DT: Thiffany, sabemos que outras mulheres negras já passaram pelo cargo que você está pleiteando, mas você é a primeira mulher trans a lançar candidatura. Houve algum motivo especial para isso?

TO: Sim, foram vários questionamentos, inclusive de colegas, como a Paulete Furacão, por exemplo, que há quatro anos atrás já havia me dito isso, a própria Milena Passos….outras mulheres negras já haviam me provocado, me “cutucado” para ocupar esse lugar. Em diálogo com as lideranças, Diogo de Lindi, um grande amigo meu, também já havia me dito isso. Depois, conversando com outras lideranças surgiu a necessidade de entender essa ocupação numa perspectiva interseccional. Esse lugar precisa ser de mulheres, mas de “mulheridades”. Todas essas provocações foram muito importantes e que estão me levando a esse lugar da disputa pela Ouvidoria Cidadã.

DT: Você está recebendo apoio de diversos movimentos sociais, dentre eles, o Fórum Baiano LGBT, GAPA Bahia e Casa Marielle Franco Brasil. Quando você olha para trás e vê toda sua jornada, suas dificuldades, suas vitórias… como enxerga esse apoio de comunidades tão significativas?

TO: Confesso que atualmente estou muito emotiva. Dia 16 de março foi meu aniversário e foi uma data que eu chorei muito, já acordei chorando. Quando comecei a ver as manifestações de apoio, comecei a me ver, lembrar do passado. Eu quando criança e adolescente, sempre fui podada, o que me levou a nunca acreditar no meu potencial. Eu fui uma criança com distúrbio de aprendizagem, tive várias questões no meu processo de alfabetização e letramento. Depois, estar na universidade nunca foi fácil, sofri violências e violações. Nunca acreditei no meu potencial e nem em ocupar um lugar enquanto gestora. Então, olhar para esses movimentos é acreditar nessa possibilidade de forma coletiva, como dia a teórica Cláudia Pons Cardoso.

DT: O processo para a candidatura foi aberto através de edital publicado dia 10 de março, como já citamos. A partir de agora, quais os próximos passos?

TO: Os primeiros passos foram as habilitações das instituições da sociedade civil que compõem o Conselho de Direito, as instituições que votam. Agora, esperamos a homologação dessas instituições e a homologação das candidaturas. E a partir disso, vamos dialogar com as instituições que fizeram a homologação, vamos apresentar nossas propostas e construir uma campanha propositiva e com qualidade mostrando tudo que temos para contribuir não só para a instituição Defensoria Pública, quanto para a sociedade baiana. Pretendemos tornar públicas as nossas propostas com a sabatina que será realizada com todas(os) as(os) candidatos e discutir como podemos melhorar a vida de baianas e baianos. Seguindo o rito, após isso, teremos a votação que vai eleger uma lista tríplice que será encaminhada para a Defensoria que irá escolher quem vai ocupar o cargo na Ouvidoria Cidadã.

DT – O que podemos esperar da Ouvidora Thiffany Odara?

TO: Cumprir as funções para as quais fui eleita. A função na Ouvidoria Externa é promover a cidadania, a promoção da garantia de Direito, o acesso à justiça àquelas pessoas que não tem essa facilidade de chegar ao judiciário. É garantir a políticas públicas através de equipamentos que facilitem a inserção e reinserção dos grupos que historicamente são vulnerabilizados. Estamos em um estado cujo território é extenso, são 417 municípios com diversos territórios de identidades. Ter a ampliação da Defensoria Pública dentro dos nossos municípios, promovendo a inclusão do acesso à justiça de maneira facilitada e garantia de direitos, é de extrema importância, é promover dignidade para o nosso povo. O papel da Ouvidora é uma escuta qualificada que possa pensar a garantia de Direito e a promoção de valorização desse espaço que é a Defensoria Pública e da inclusão daqueles que estão historicamente excluídos.

Carlos Leal -Jornalista formado pela Universidade Tiradentes, Especialista em Marketing Digital, autor do livro infanto-juvenil Histórias de Dona Miúda: a Raínha do Forró (Ed.Pinaúna), co-autor do livro Cem Anos de Dorival Caymmi: panoramas diversos, em parceria com a Professora Dra. Marilda Santanna. Atualmente colabora com artigos e textos para O Dois Terços e para o jornal A Tarde e escreve duas biografias: da cantora alagoana Clemilda e da sambista baiana Claudete Macêdo.