Sala VIP

Gê de lima, a nova textura do samba

Genilson Coutinho,
13/08/2020 | 11h08

Gê De Lima, homem da periferia de São Paulo, cantor negro, dono de um negro talento! Ouvir sua obra é ser convidado à uma experiência entre a velha guarda dos ritmos negros brasileiros e a nova cena da MPB (Musica Preta Brasileira). O que ele é está em seu trabalho. É preto, gay, bonito, poderoso e sua música é espelho! Impossível ouvir seu som e não sorrir, refletir, dançar, sorrir novamente, acreditar no amor e se empoderar. Tudo junto, misturado. Conheça um pouco desse sambista paulistano, desse homem singelo, dono de um talento engajado!…

Filipe Cerqueira, colunista do Dois Terços, conversou com o cantor Gê de Lima sobre trabalho, resistência, samba e muito mais, nesta entrevista exclusiva abaixo.

FILIPE: Como é para você, um homem gay, negro, cantar samba, um ritmo brasileiro que historicamente não reflete a comunidade LGBT, em seus versos, seus ícones, mesmo sendo muito consumido pelo nosso povo?

GÊ DE LIMA: É conflitante! Eu percebo o quanto o samba me afastou do samba, eu demorei pra entender, mas entendi. Quando eu me colava numa roda de samba, uns 7 anos atrás, eu performava uma masculinidade e me retraia, tudo de uma forma inconsciente. Eu não me sentia livre pra me soltar e ser quem sou e aí foi quando me afastei e fui para outros lugares, encontrando outras referencias, possibilidades. Sempre quis o samba, afinal é a minha raiz e de uma ancestralidade que qualquer pessoa preta tem o direito de acessar independente da orientação sexual ou gênero, estamos falando de cultura preta.

Não me senti a vontade, confortável para estar no samba, foi quanto me dediquei a outros gêneros musicais, lancei outras músicas num outro seguimento, claro sempre colocando minha verdade e comunicando algo que contribua com nosso povo. Mas foi sim um distanciamento do samba, hoje retorno a ele, mais amadurecido das ideias é com o intuito de pautar a diversidade, de fazer um movimento que seja transformador para a evolução das relações do nosso povo, das famílias pretas.

O samba sempre foi dentre muitas coisas uma ferramenta de luta, de resistência é salvou a vida de muitos homens, acredito que a gente possa comunicar e gerar transformações positivas também para vidas LGBTQIA+

Filipe Cerqueira : Apesar de ser reconhecido como cantor de samba, seus trabalhos tem uma influencia muito grande do samba rock, do blues, jazz. É um samba metalizado o que você faz! Como se dá o seu processo de criação e a verdadeira viagem rítmica proposta para seu público.

GL: Eu acho que é muitas das influências de coisas que eu aprendi a ouvir dentro de casa. Na família tem o tio Ci, que era Dj e influenciou muito a família de samba rock, de Jorge Ben jor, Simonal, Ray Charles e isso foi passando de geração pra geração. Graças a Oxalá eu absorvi tudo!!! Agora como se dá o babado eu não sei, porque eu não costumo pensar num padrão rítmico de uma proposta específica, cada música é literalmente uma viagem rs

Felipe Cerqueira : O  samba é conhecido por apesar da melodia intensa, alegre, ser dono de uma poesia muito triste e também de retratar a dor do povo pobre e preto brasileiro das favelas. Reparei que, apesar de abraçar em algumas canções esse aspecto tradicional do samba, você se envereda também por um caminho muito solar, com letras positivas, de amores mais bem resolvidos, ligações intimas e intensas.  Este caminho nas mensagens é proposital? Qual norte você segue quando escolhe seu repertório?

GL: O samba fala de nossas verdades, da verdade de cada compositor. E sabendo da nossa história enquanto pessoas pretas, entendemos os motivos das composições principalmente dos mais antigos, muitos falavam de senzala, sinhá… mas o Samba também sempre foi alegria o respiro, sempre foi “O sorriso negro”

Eu busco dizer no samba o que sinto falta de ouvir, com por ex na composição de “esse preto” que é uma fala se um homem preto pra outro homem preto

Então ponho a minha verdade, eu não miro num caminho, é um processo muito livre ou escrevo o que sinto, ainda vou falar de muitas coisas que me virão

FC: Nos seus clips você ressalta muito o amor negro gay. Regado a muito afeto, declarações de amor, sorrisos. Se vê todos os tipos de corpos negros envoltos em uma estética de acolhimento e visibilidade. Essa característica solar do seu trabalho reflete também no seu lado áudio visual. Pode nos falar de como nascem essa metamorfose de canção em imagem? Como se dá o processo criativo de seus clips?

GL: O primeiro clipe que lancei com essa temática foi “Fotografia” Não me via representado nos clipes quando decidi protagonizar um romance e convidei Wellen para fazer par comigo. A primeira vez que vi um beijo lgbt negro em clipe, foi no meu próprio clipe. Tô sempre nessa busca de romper e trazer representatividade, gosto muito da ideia de coletividade, então busco estar acompanhado de outras representatividades das quais prático a empatia. Na sigla LGBTQIA+ tem muita gente, no mundo tem muita gente, somos diversos e faço questão dessa diversidade

FC: Por falar em corpo negro, na musica TEXTURA, você dá um recado ao povo branco insistente na ideia de invasão ao nosso ser “estranho” à branquidade. Corpo, cabelo, nariz, ancas, tudo é explorado pela branquitude e você é muito direto perguntando na canção “qual o limite da sua educação” e do limite imposto por esse ser negro empoderado. Lembra um pouco a mensagem também deixada por Chico Cesar em “Respeite Meus Cabelos Brancos”. Como nasceu a ideia da letra e também do clip, das pessoas negras quebrando a quarta parede e entregando a letra ao espectador.

GL: O incômodo com esse jeito invasivo das pessoas brancas com corpos pretos existe a muito tempo, passou a existir quando fomos trazidos forçados pra cá, e fomos forçadamente escravizados e desumanizados, eles olhavam nossos dentes, saca? Esse senso de liberdade pra tocar nossos corpos é reflexo da educação racista desse país.

Eu estava olhando minhas redes e vi muitas pessoas pretas se queixando da mesma coisa, vi também um vídeo de uma prima minha Néia, onde ela desabafou toda a sua angústia de ser tocada nos cabelos e alguma das palavras delas viraram melodias na minha cabeça e então sentei pra escrever textura, exigindo mais respeito com nossos corpos pretos.

FC: O sambista provocador Ge De Lima ouve o pop brasileiro e/ou internacional como todo bom gay poc? Ou essa fase das coreografias babadeiras, dublagens dentro do quarto e bate cabelos nunca fez muito parte do seu mundo?

GL: Eu amo Whitney, houve uma fazer de minha adolescência que cantava muito Mariah Carey, no quarto e isso inclusive influenciou meu canto, ficava tentando fazer igual, eu sempre me encantei por cantos que fossem bunites. Eu sempre ouvi muita música brasileira, mais do que música internacional, nem sei cantar inglês rs… hj falando de diva popular internacional, ouço e vejo as produções de Beyonce

FC: Para pergunta final, queria saber quem Ge De Lima indica como boa opção para além do pop farofa na musica brasileira? Três artistas que não saem atualmente do seu playlist.

GL: Eita (longa pausa). Tenho escutado “YOÙN”. Estou ansioso pelo disco solo de Liniker. Falta um… tô pensando rsrs… Abri até meu YouTube pra ver é vi que tenho escutado muita coisa antiga rs… Yoùn porque é música preta brasileira, gosto das letras, da levada de R&B os clipes são lindos é bem pretos, são talentosos, música boa pra ouvir de noite. Liniker é uma força que mexe na espinha, já foi meu despertador me dando bom dia, vóz, melodia, sensibilidade, fluidez.

Filipe Cerqueira é diretor da SOUDESSA Cia de Teatro, historiador pela UNEB, realizador audiovisual pelo Projeto Cine Arts – UNEB – PROEX e apaixonado por cinema.