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‘Foi um renascimento, uma nova vida’, diz uma das primeiras beneficiadas do Mutirão de Adequação de Nome e Gênero da Defensoria

Genilson Coutinho,
28/01/2022 | 16h01
Foto: Divulgação

Então com 14 anos, em meados dos anos 1990, Tuka Perez passou a não se reconhecer como garoto, homem. Então sem maior compreensão sobre o que significava transexualidade, foi pesquisar e em seguida conversar com mulheres trans e travestis sobre o que lhe ocorria. “Não sabia antes como lidar com meus sentimentos, com meus hormônios”, relembra.

Uma das participantes do I Mutirão de Adequação de Nome e Gênero da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA), realizado em 2019, Tuka já havia ingressado anteriormente com um processo para mudança em seu registro civil. Sem sucesso. “Isso foi em 2014, mas na época se exigia passagem por psicólogo, laudo médico, entrada na justiça. Acabou que não houve encaminhamento. Daí, anos depois, veio o Mutirão da Defensoria e também com o fim de várias exigências, o procedimento ficou mais acessível e finalmente realizei a mudança”, conta.

Somente em 2021, foram mais de 500 adequações realizadas pela Defensoria em todo o estado. Mas, antes de chegar o seu dia, Tuka viu (e continua vendo) muita coisa. Tendo convivido com muitas amigas trans que se encontravam na luta pelo reconhecimento público de acordo com o gênero com o qual se identificavam, Tuka lamenta ter visto alguns funerais onde o nome masculino foi o que constou na lápide. “Isso nos machucava. A gente queria enterrá-las como mulher, como se reconheciam, uma questão de respeito, dignidade”, sustenta.

TRANSIÇÃO
Oriunda de uma família humilde, com pai e mãe que não concluíram o ensino médio, Tuka conta que os irmãos a tratavam como gay, mas que até os 14 anos não se identificava como gay, pensava ainda até que era homem heterossexual. Por medo dos pais a colocarem para fora de casa, chegou mesmo a namorar com garotas.

“Até que um dia minha mãe entrou no quarto e me viu de biquíni. Passei primeiro a me dizer como gay. Daí em diante, por conta própria na época, comecei minha transição hormonal. Também apliquei mega hair, passei a vestir roupa feminina, coloquei unhas. Isso, eu estava com uns 17 anos, era por volta dos anos 2000. Achei novamente que seria expulsa de casa, meus pais não entendiam, mas fazia minha parte e creio que o amor falou mais alto, isso não aconteceu” relata.

Tuka diz que, no entanto, até hoje não consegue explicar bem para os pais sua condição de mulher trans. Já com os irmãos e irmãs, sua situação mudou quando em 2013 passou a trabalhar como assessora parlamentar na Câmara de Vereadores de Salvador. “Começaram a me levar mais a sério e passamos a ter uma relação mais amigável”, observa.

RENASCIMENTO
Quando ingressou na Câmara de Salvador, Tuka pôde adotar seu nome social feminino em seu crachá de funcionária. “Eu nunca andava com minha cédula identidade, só andava com meu crachá e o apresentava nos lugares buscando me preservar [de hostilidades] nos ambientes”, pontua.

Por ter vivenciado diversas situações de preconceito, Tuka diz que ficou acostumada com “as porradas da vida” e que hoje releva e olha de modo diferente para algumas situações. “Considero que algumas pessoas que manifestam falas ou determinadas atitudes preconceituosas são pessoas que não sabem o que dizem, não estudaram. Então retruco só no sentido de orientar, fazer pensar. Elas julgam sem conhecimento”, pondera.

Quanto ao que representou para si a nova identidade obtida após o Mutirão da Defensoria, Tuka Perez manifesta de modo inequívoco. “Quando recebi minha certidão, eu recebi uma nova vida, porque morreu aquela outra criatura do meu antigo documento. Eu renasci. Foi tudo novo, uma conquista muito grande”.

Militando nas questões da comunidade trans há muitos anos, Tuka avalia que é fundamental o papel da Defensoria, não apenas nos Mutirões de Adequação, mas no que concerne à garantia dos direitos desta população, em especial o acolhimento e o papel de suporte e orientação oferecido.

“A nova geração segue a luta e vai conquistando mais direitos. Por outro lado, nada melhor que ter a Defensoria colaborando. Ainda há muita opressão, humilhação e dor, então é muito bom que os jovens tenham a quem procurar, saber que a Defensoria está conosco, abraça nossa causa. O próprio atendimento e a visão da Defensoria sobre a questão demonstra este acolhimento conosco”, diz.

VI MUTIRÃO
Prosseguindo nos seus esforços de promover acesso à justiça e garantir direitos de populações vulneráveis, a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) realizará entre os dias 31 de janeiro a 4 de fevereiro as inscrições para seu VI Mutirão de Adequação de Nome e Gênero. A ação é iniciada ainda em janeiro, quando se comemora o Dia Nacional da Visibilidade Trans (dia 29).

Nesta edição, o mutirão conta com a parceria do Ministério Público do Estado da Bahia e, por conta do prosseguimento da pandemia da covid-19, as inscrições serão realizadas de forma remota a partir de contato inicial por meio de mensagens de whatsapp. O número de contato ainda será divulgado nas redes sociais da Defensoria.

Na última edição do Mutirão, realizado em 2021 inteiramente por vias virtuais, a DPE/BA recebeu 508 inscrições para readequação dos registros, sendo 293 na capital baiana e 215 no interior.

Uma das participantes foi a artesã Érika Ferreira que dentro de 15 dias recebeu sua nova certidão de nascimento e passou a dar entrada nos seus novos documentos. Érika diz que antes se sentia muito envergonhada quando as pessoas a chamavam pelo nome masculino que possuía.

“Hoje estou feliz, faço questão de chegar nos lugares e mostrar meu documento. Algumas pessoas podem até notar que sou trans, mas já não falam nada. Com o documento sou chamada como gostaria de ser chamada, como me sinto: como mulher. Então, me sinto feliz e agradeço à Defensoria Pública por ter me ajudado nesse momento” diz Érika.

DEPOIMENTOS
“Após a adequação, acessei a cidadania. Antes passava por diversas situações constrangedoras. Depois de meu processo de transição, acontecia ainda de as pessoas lerem meu nome feminino e considerar que se tratava de alguma fraude. É muito importante para as pessoas trans ter acesso a esta alteração para que elas se sintam identificadas por quem elas realmente são.”

– Dhan Tripodi, homens trans, estudante de Psicologia e padrinho da VI Mutirão de Adequação da Defensoria.

“A retificação do meu nome e dos meus documentos chegou como algo que legitimou a mim, meu corpo, minha existência. Antes disso, tinha que ficar justificando quem sou, qual meu gênero, era um briga constante e diária. Mas agora tenho um documento oficial que comprova a minha identidade. Isso muda muito a minha perspectiva de saúde, de bem estar e de tranquilidade, que é algo que geralmente não temos.”

– Inaê Leoni, mulher trans e professora da rede municipal de ensino de São Francisco do Conde.

“Fiz minha retificação pelo mutirão e foi melhor porque o processo é mais rápido e mais barato do que se fizesse apenas por minha conta. É importante para as pessoas trans que o mutirão ocorra e siga ocorrendo pela facilidade e pelo alcance que ele tem.”

– Aladdin Andrade, homem trans e estudante de Letras.