Família Homoafetiva por Enézio de Deus

Genilson Coutinho,
03/09/2011 | 12h09

Notório avanço o Poder Judiciário brasileiro vir reconhecendo o afeto como o lastro de existência e de sustentação das uniões entre pessoas do mesmo sexo; motivo pelo qual as ações afetas a tais relacionamentos, cada vez mais, tramitam nas Varas de Família – que são, de fato, as competentes para a apreciação de tais demandas, assim como o são as da Infância e da Juventude para o processamento das adoções de crianças e adolescentes. E a esteira jurídico-teórica do reconhecimento familiar das uniões homossexuais é a mesma que vem possibilitando o deferimento de pedidos de colocação de infantes em famílias substitutas bi-parentais homoafetivas: a analogia (art. 4ª da LICC; art. 126 do CPC) com o instituto da união estável que, à luz da principiologia constitucional – especialmente da dignidade humana e da igualdade -, presta-se a estender os mesmos efeitos jurídicos às relações afetivas entre pessoas de sexo idêntico, vez que, não havendo, por ora, lei que regulamente tais relações no país, a lacuna pode e deve ser suprida – para que o Judiciário não chancele uma série de injustiças.

Por este viés interpretativo, em março de 2008, caminhou acertadamente (assim como já o fizera o TJ-RS e o TJ-MG, por exemplo) o Tribunal de Justiça de São Paulo, através de sua Oitava Câmara de Direito Privado – Apelação Cível nº 552.574-4/4, Voto nº 15.894. O juiz de primeiro grau havia declarado extinto o processo, alegando a impossibilidade jurídica do pedido de reconhecimento de união estável homoafetiva com dissolução por morte de companheiro c/c partilha de bens – ação movida por F.A.D.V. em face de A.D.G., falecido. Inconformado, o autor apelou, justificando ter havido cerceamento de defesa. Demonstrou, por meio do seu advogado, a clara base jurisprudencial brasileira que já vem reconhecendo a união estável também entre homossexuais, atestando-lhe o caráter familiar e determinando que os feitos sejam processados nas Varas de Família. Da relevante decisão do TJ-SP, participaram os Desembargadores Silvio Marques Neto, Joaquim Garcia e cujo Relator foi o Dr. Caetano Lagrasta: “Indeferimento da inicial. Reconhecimento de união estável homoafetiva. Pedido juridicamente possível. Vara de Família. Competência. Sentença de extinção afastada. Recurso Provido para determinar o prosseguimento do feito”.

Na mesma esteira, conforme entendimento anterior do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (maio de 2007), através da Des. Heloísa Combat, Relatora do Acórdão no Processo nº 1.0024.06.930324-6/001(1), “à união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana”. Realmente, a parceria homossexual merece reconhecimento e tratamento perante o FORO DE FAMÍLIA, tanto pela semelhança do fato que faz gerar a coabitação – o afeto -, quanto pelas consequencias que, desta coabitação, podem advir” – conforme se posicionou, em decisão referente a sucessão e partilha de bens, a magistrada baiana Maria das Graças Hamilton (processo nº 05.780.139-2, 14ª Vara de Família da Comarca de Salvador-Ba).

O próprio Superior Tribunal de Justiça, em matéria de reconhecimento de direito previdenciário e de assistência médica por exemplo, já corrobora esta base jurisprudencial, como são exemplos os seguintes julgados: “A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica”. (REsp 238.715/RS, Rel.Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 07.03.2006, DJ 02.10.2006, p. 263) / “Diante do § 3º do art. 16 da Lei n. 8.213/91, verifica-se que o que o legislador pretendeu foi, em verdade, ali, gizar o conceito de entidade familiar, a partir do modelo da união estável, com vista ao direito previdenciário, sem exclusão, porém, da relação homoafetiva”. (REsp 395.904/RS, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, SEXTA TURMA, julgado em 13.12.2005, DJ 06.02.2006, p. 365)

Em setembro de 2008, o Superior Tribunal de Justiça, através de sua Quarta Turma, por 3 votos a 2, abriu precedente para que as ações de reconhecimento de união estável entre homossexuais não sejam obstadas sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido. O agrônomo brasileiro A. C. S. e o seu companheiro canadense B. J. T ingressaram com ação de reconhecimento da sua união afetivo-familiar (ostensiva, contínua e que já durava quase 20 anos) perante a 4ª Vara de Família da comarca de São Gonçalo-RJ. Negado o pedido e extinto o processo, sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido, o casal recorreu ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mas esse ratificou a decisão de primeiro grau (sob a posição de não haver previsão legal para tal reconhecimento na legislação pátria). Almejando a obtenção do visto permanente do companheiro canadense para que ambos pudessem residir definitivamente no Brasil, o referido casal não desistiu e recorreu ao Superior Tribunal de Justiça. Esse, através da sensibilidade dos Ministros Pádua Ribeiro (Relator), Luís Salomão e Massami Uyeda, firmou, ao contrário, o entendimento de que há a possibilidade jurídica de apreciação do pedido e de que, apesar de não ter adentrado no mérito da ação, essa deveria ser retomada para a devida e necessária apreciação pela Justiça fluminense – uma vez que não existe óbice, no ordenamento jurídico nacional, quanto ao reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.

Em maio deste ano de 2011, a mais alta corte do Poder Judiciário brasileiro – guardiã da Constituição, o Supremo Tribunal Federal – reconheceu, pela unanimidade de 10 ministros votantes, que a união homossexual pode ser considerada entidade familiar no Brasil, em plena igualdade de direitos com relação às vinculações heterossexuais estáveis (que o legislador denominou de união estável). Assim, desde que preenchidos determinados requisitos legais – consubstanciados na convivência factual pública (notória, ostensiva), contínua, duradoura e com perspectiva de vida em comum -, casais de pessoas do mesmo sexo formam uniões estáveis aptas ao usufruto de todos os direitos e ao exercício de deveres decorrentes do mesmo sentimento: o amor.

O julgamento histórico do STF se deu em virtude da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132/RJ e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277. A primeira foi apresentada em 2008 tendo como arguente o Governador do Estado do Rio de Janeiro (Sérgio Cabral), visando especialmente a que servidores estaduais homossexuais, conviventes em relações estáveis, também pudessem usufruir dos benefícios (a exemplo de licença e previdência) concedidos aos servidores unidos por laços heterossexuais. A segunda (interposta originalmente como ADPF em 2009) teve como arguente a Procuradoria Geral da República. Reclassificada como ADI pelo STF (conforme pedido alternativo da própria PGR, aceito pelo Supremo), objetivou, em suma, o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre “homem e mulher” (para que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis alcançassem os companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo).

Continuará importando isto: ao prever, no caput do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, o constituinte, rompendo com uma história de verdadeira exclusão constitucional, pôs, pela primeira vez sob a tutela estatal, a entidade familiar, sem dizer, necessariamente, que tipo de família é merecedor de proteção. Se até a Constituição de 1967, a única família albergada pela proteção estatal era a selada pelo casamento, a partir de Lei Maior de 1988, esta realidade foi modificada. Assim, o que delineia, hoje, o que é uma base familiar é a convivência afetiva das pessoas, que deve gerar efeitos na órbita do Direito das Famílias, para além deste ou daquele posicionamento ideológico, sócio-cultural específico ou religioso. É a perspectiva de vida em comum, aliada à convivência respeitosa e afetivamente estável que diferenciam a família dos demais agrupamentos humanos. Assim, formado por seres humanos que se amam, para além de qualquer restrição discriminatória, determinado grupo familiar já está sob a chancela protetora da nova ordem constitucional, a partir da sistemática do referido artigo 226, em sintonia com a base principiológica da Constituição Federal, que tem na dignidade da pessoa humana o seu eixo central de sustentação.

O que se descortina em matéria de reconhecimento do AMOR em face do Poder Judiciário brasileiro, a partir das posições que esse vem tomando (ainda convivendo com atávicos preconceitos), aponta a direção mais bonita: a que independe de qualquer condição para que tal sentimento seja, efetivamente, atestado em toda sua inteireza e nas implicações que traz na vida relacional-familiar das pessoas – para além de cor, sexo, orientação afetivo-sexual, nuanças de gênero… Conjugar, no exercício da existência concreta, o verbo AMAR persistirá justificando a formação de uma família, qualquer que seja essa. Realmente, para enxergar a família, é preciso enxergar o amor. Se não se identifica afeto, não se vê família. Por isso, continuo ratificando e ecoando o cancioneiro: “Eu vejo a vida melhor no futuro. Eu vejo isso por cima do muro de hipocrisia que insiste em nos rodear”.

Enézio de Deus Silva Júnior – Advogado; Membro do IBDFAM; Professor de Direitos Humanos (ACADEPOL e FTC-EAD); Gestor Governamental (servidor público EPPGG); Autor dos livros: A Possibilidade Jurídica de Adoção Por Casais Homossexuais (5ª edição, Juruá Editora) / O Regresso (co-autoria, Juruá Editora) / Retirolândia: Memória e Vida (Juruá Editora) / Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo (co-autoria, Editora Revista dos Tribunais). eneziodedeus@hotmail.com