Diálogos da diferença

Genilson Coutinho,
02/05/2011 | 11h05

Notícias como as que revelaram as agressões sofridas por jovens homossexuais na Avenida Paulista, em São Paulo, em novembro de 2010, e a dificuldade- de alguns parlamentares para dar seguimento aos trâmites que permitirão a criminalização da homofobia no Brasil denunciam o tipo de problema que as instituições encontram para garantir a punição de ações que violam o direito à vida e à integridade física dos cidadãos.

De tempos em tempos, somos surpreendidos por notícias de índios queimados, empregadas domésticas espancadas, mulheres violentadas, homossexuais agredidos. São as formas mais manifestas de um problema que também se evidencia por gestos e atitudes menos acintosos, mas não menos graves. Tudo legitimado pela ignorância sobre o que são os direitos humanos e por valores questionáveis.

As pessoas não são estimuladas a problematizar suas vivências ou a observá-las de diferentes pontos de vista. Por não considerarem as tensões que os permeiam, os discursos e as soluções acerca dos problemas que essa sociedade experimenta, esvaziam-se. Quando nos encontramos nas interações cotidianas, continuamos agindo conforme os modelos por nós criticados sem percebermos a contradição entre discurso e prática.

Negociar limites
É provável que uma reportagem como a publicada em CartaCapital (reproduzida aqui), sobre o Projeto de Lei Complementar 122 e a discriminação dos homossexuais, passe despercebida da maioria. Coloca em relevo um tema que a sociedade ainda tem dificuldade para debater e destaca um aspecto determinante da formulação de qualquer lei: a negociação.

Toda lei ou regra é resultado de uma negociação que toma como ponto de partida um princípio do qual os interessados compartilham. A lei em questão considera o artigo 5º da Constituição Brasileira que afirma: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Dessa forma, assim que promulgada, ela reafirma direitos e estabelece limites e procedimentos dos quais todos deverão corresponder.

Há, no entanto, uma parte delicada em todo esse processo. As leis, que chegam à maioria das pessoas como a melhor resposta que a sociedade pôde dar a um problema, ocultam os caminhos que levaram a essa resposta. A maior parte dos que a elas se sujeitam não participou de suas formulações e desconhece as negociações que as delimitaram.

Legislar sobre o medo
É comum, na legislação brasileira, as leis receberem um apelido, que popularmente as identifica. Ao atual PLC 122/2006 deu-se o apelido de Lei Contra a Homofobia. A palavra homofobia (homo: igual, fobia: do grego “medo”), é um termo utilizado para identificar o ódio, aversão ou discriminação de uma pessoa contra homossexuais e, consequentemente, contra a homossexualidade, e pode incluir desde formas sutis de preconceito e discriminação até agressões físicas.

No caso em questão, se pensarmos no significado da palavra homofobia, não seria demais nos colocarmos uma indagação a respeito da lei proposta, a partir do apelido que ela recebeu. Considerando a etimologia da palavra, criminalizar a homofobia significaria, literalmente, criminalizar um medo. É claro que não se trata disso, basta ler a íntegra do projeto de lei para perceber. Mas o apelido proposto incorpora essa sutileza. Imagine criminalizar a claustrofobia, medo de lugares fechados. Ninguém jamais pensaria algo semelhante. Daí uma questão: o que esse apelido dado à lei denuncia? Provavelmente, a grande dificuldade que temos de lidar com nossos medos.

A lei contra a homofobia, na verdade, criminaliza comportamentos que têm origem num medo. Medo que é reforçado por uma sociedade incapaz de falar francamente sobre ele, e que, quando a ele se refere, o faz, muitas vezes, por meio de discursos insidiosos. Quantos programas de humor ridicularizam o comportamento homossexual? Quantas pessoas contam piadas em que o gay surge como figura ridícula ou desqualificada? Em quantas instituições eles podem se apresentar como tal e falar dos pequenos acontecimentos da vida pessoal, sem que sejam vítimas de olhares perniciosos?

Eis, então, que o jovem sujeito a todos esses comportamentos e discursos é forçado a adotar uma posição: se ele não se descobre homossexual, tenderá a fugir dos que são, a evitá-los e, quando necessário, para acalmar seu medo irracional, talvez se valha da atitude de agredi-los verbalmente ou até fisicamente. Caso o mesmo jovem se descubra homossexual, a ele restará o medo de se expor. Nesse contexto, cada um pega seu medo e faz com ele o que pode ou o que o discurso dominante autoriza. Mas não se discute esse medo.

Mergulho na diversidade
A abordagem legislativa é importante e deve ser estabelecida. A lei ora proposta preenche uma lacuna importante dos direitos civis, mas é necessário ir além. Num país onde se ouvem aberrações como “tem lei que pega e tem lei que não pega”, não há garantia nenhuma de que essa lei vai mudar comportamentos, talvez assegure às vítimas, o que é muito importante, um aparato legal para punir aqueles que, incapazes de lidar com seu medo, partem para atitudes irracionais. Por outro lado, as instituições podem contribuir significativamente para a transformação desse quadro, entre elas, está a escola.

A sala de aula pode ter um papel decisivo no estabelecimento das razões que justificam as mudanças de atitudes pelas quais parte da sociedade civil legitimamente luta. É claro que há aspectos que comprometem iniciativas dessa natureza. Apesar de temas ligados à diversidade, como questões de gênero ou das pessoas com deficiência já aparecerem nos livros didáticos, o tema da diversidade sexual continua ausente. Não se pode também ignorar que uma parcela significativa da comunidade escolar – 87% – assume ter preconceito contra homossexuais, segundo pesquisa da Faculdade de Economia e Administração da USP, em 2009. Por isso a capacitação dos profissionais que trabalham na escola é fundamental e a escola não é apenas a sala de aula, é também o pátio, a secretaria, a quadra, a cantina, a biblioteca, a sala dos professores, o “portão”, a cozinha.

É bom lembrar que a escola é um espaço rico de interação e construção de saberes e atitudes. Por ser um lugar onde problemas como a homofobia se insinuam, respondendo aos estímulos do ambiente social, a escola pode se constituir como um espaço privilegiado de reflexão sobre esses comportamentos.

Uma etapa importante de formulação/negociação da lei, de qualquer lei, deve se dar entre os que a ela estarão sujeitos. Discutir dentro da escola, uma lei como a que está sendo proposta, acompanhar o debate que em torno dela se faz é um passo importante para a formação de cidadãos conscientes de seu papel e lugar na sociedade.

José Carlos de Souza é professor de pós-graduação do Instituto Vera Cruz e professor de Literatura e Produção de Texto da Stance Dual School


Fonte: http://www.cartacapital.com.br/politica/dialogos-da-diferenca