Contos da quarentena: LGBTQIA+ contam suas vivências em tempos de pandemia

Genilson Coutinho,
17/08/2020 | 10h08

A pandemia e o isolamento social mudaram a vida de muita gente, da rotina de trabalho às relações pessoais, todos, de uma forma ou de outra, foram afetados.
E com a comunidade LGBQIA não foi diferente, e muitos buscaram fazer a diferença para sobreviver a tantas pressões.
Convidamos alguns internautas para nos contar como tem sido este momento, e sobre como eles estão sobrevivendo.

Iremos iniciar com Almerson Cerqueira Passos .

É tempo de encarar suas feridas, olhar para elas e reconhecer que dói realizar algumas travessias…

Assim tem sido esse processo de quarentena, o lugar que não tem fuga e muito menos a velha justificativa de que não temos tempo, pois durante uma vida buscamos solucionar nossas lacunas afetivas do lado de fora, como se fosse possível. Isso é algo que tem sido marcante no meu processo de isolamento, como também escuto de muitas pessoas que agora não existe desculpa para não nos revisitarmos. Os projetos de vida fracassados, as mágoas deixadas pelo caminho, o grito nunca ecoado, a morte pelo silêncio, as relações afetivas hipossuficientes, todas essas questões parecem bater a nossa porta sem pedir licença, neste momento.

Entretanto, quando escuto as narrativas de que vivemos um novo normal, mediante os atravessamentos da pandemia, é difícil digerir a ideia de que esse novo deverá ser interpretado e encarado como algo diferente de tudo. Há séculos, nós, pessoas negras e minorias políticas, vivemos um cerceamento de direitos que se materializam na ausência de acesso básico aos dispositivos constitucionais, como saúde, educação, emprego, lazer, entre outros, que nos possibilitem uma condição mínima de sobrevivência. As narrativas de que nunca mais viveremos na sociedade como antes me faz questionar sobre para quem esse novo normal está disponível, uma vez que os índices de feminicídio, de assassinatos contra jovens negros, agravos de saúde mental da população negra e LGBT, como depressão e suicídio, aumentaram nesse período. Se antes já éramos atravessados pela máquina da necropolítica, essa estrutura da modernidade colonial forjada pelos poderes institucionais do Estado, o que restou de nós, corpos destituídos de qualquer humanidade e civilidade possível? Não dá para acreditar que esse normal será novo, porque os sistemas de opressão como o capitalismo, o racismo e neoliberalismo, por exemplo, reatualizam-se para manter a hegemonia de um sistema de supremacia branco, que decide, de maneira perversa e política, que merece viver e quem deve morrer.

Esse novo modo de vida instaurado pelo isolamento social tenta instituir, no seio das construções e do imaginário sociais, algo que nunca será novidade, pois vivemos constantes tentativas de apagamentos e silenciamentos das nossas subjetividades, experiências e existências. O Estado de segregação imposto pelo racismo estrutural implica fundamentalmente em uma política de isolamento e exclusão do nosso povo, cerceando o acesso aos dispositivos básicos para o exercício de uma humanidade digna, além de retrocessos contínuos no âmbito das políticas públicas e assistenciais. Com isso, questiono: onde está a novidade dessa medida que nomeia o isolamento social como um novo normal se nós, minorias políticas, somos constantemente privadas de liberdade e do próprio devir?

Só sei que morremos diariamente, tentando lutar contra essa política de morte instaurada pelos aparatos legais e de justiça. As nossas experiências de sofrimento e desumanização causadas pela colonialidade do ser e do saber são acumulativas: educação deficitária, pouca instrumentalização na busca por um emprego digno, condições desumanas no Sistema Único de Saúde, escassez de saneamento básico, falta de água, uma geografia da criminalidade devidamente intencionada, um sistema de justiça parcial, um projeto de afeto que nunca nos incluiu, entre outras, tudo isso faz com que estejamos vivendo durante séculos nesse isolamento dilacerante.

O novo normal não vai apagar as nossas dores e muito menos oferecer oportunidades de construir uma vida isenta dos tiros neocoloniais. O novo normal continuará nos destituindo da condição de humanidade, afinal, como já cantava a nossa potente Elza Soares, “a carne mais barata do mercado e a carne negra”. Desculpe-me por não aceitar que tudo será diferente a partir de agora e que o novo normal chegará para todos/as. Meus ancestrais têm vivido anos de isolamento, lutando para que ao menos tenhamos memórias capazes de alimentar a pouca esperança que nos move. Desculpe-me, mas eu não acredito nessa história contada pela Casa Grande de Democracia Racial.

O novo normal continua velho, como sempre, assim como a nossa luta por dignidade. Sinto muito se você acredita neste novo mundo, mas eu não vou me calar.

Almerson Cerqueira Passos
Psicólogo. Escritor. Autor do livro “Águas de um Orí”. Professor de Pós Graduação de Curso Lato Sensu. Especialista em Docência do Ensino Superior. Mestrando pelo Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, pela Universidade Federal da Bahia