Ciência, religião e cura gay

Genilson Coutinho,
04/07/2012 | 11h07

A Sociedade Brasileira de Genética (SBG) emitiu nota condenando o crescimento do ensino do criacionismo — a ideia de que os seres vivos foram criados por Deus em sua forma atual — em detrimento da teoria da evolução, originada por Charles Darwin e Alfred Russell Wallace no século19, e de lá para cá reforçada e reformulada à luz das descobertas de áreas tão díspares quanto geologia e genética.

A nota é muito importante, na medida em que marca posição num tema que deve se tornar cada vez mais candente com o crescimento do protestantismo evangélico no Brasil. Filosoficamente, ela adota uma postura que já foi majoritária nos países onde essa batalha é travada há mais tempo, com os EUA, mas que vem sendo cada vez mais criticada como, dependendo de quem se consulta, covarde, míope ou intelectualmente desonesta: trata-se da postura acomodacionista, segundo a qual não há nenhum conflito de fundo entre ciência e religião, porque, no fim, a ciência não tem nada a dizer sobre as “verdades” religiosas, e vice-versa.

No mesmo momento em que a nota acomodacionista surge, curiosamente, o Brasil debate sobre se psicólogos cristãos devem ter a liberdade de propalar a capacidade de “curar” a homossexualidade. Não deixa de ser interessante notar que esse debate ocorre no centenário de Alan Turing, possivelmente o maior gênio científico do século 20 (ao lado de Alberte Einstein) e que cometeu suicídio exatamente para escapar da crueldade da “cura” proposta para sua condição de homem gay.

Mas, voltando ao acomodacionismo: a nota da SBG afirma que “as perguntas e as causas sobrenaturais não fazem parte do questionamento hipotético e nem das explicações em todas as Ciências experimentais modernas. Por exemplo, a pergunta ‘Deus existe?’ pode ser discutida por filósofos e cientistas (como pessoas com diferentes crenças, opiniões e ideologias), mas não pode ser abordada e respondida pela Ciência.” E, mais adiante: “embora o criacionismo possa ser abordado como explicações não científicas em disciplinas de religião e de teologia”.

Essa peça de retórica acomodacionista remete a um princípio conhecido como naturalismo metodológico, segundo o qual a missão da ciência é buscar causas naturais para fenômenos naturais. Assim, por exemplo, a questão de se a Aids é uma praga enviada por Deus para castigar a promiscuidade sexual não cabe no escopo da ciência. Se Deus realmente criou a Aids, Ele o fez por meio de um agente presente na natureza, o vírus HIV, e é aí, no agente natural, que o questionamento científico deve parar. Qualquer coisa além é a província dos teólogos.

O acomodacionismo calcado na metodologia naturalista é, antes de mais nada, um movimento diplomático: desde o julgamento de Galileu que a maioria dos cientistas parece convencida de que, forçados a optar entre ciência ou religião, as pessoas sacrificarão a primeira em nome da segunda, e o melhor, portanto, é manter o tigre obscurantista devidamente sedado. Que o tigre provavelmente é de papel — como mostram, por exemplo, a capitulação final do catolicismo ao sistema heliocêntrico, no século 19, e o avanço da cultura secular nos cantos mais civilizados do mundo — é um dado que o trauma histórico parece obscurecer.

Mas, além de ser diplomaticamente útil, seria o naturalismo metodológico filosoficamente respeitável? Existem, de fato, sérias dúvidas a respeito, como mostra um recente artigo publicado no periódico Science and Education Online. Nele, os autores argumentam que o naturalismo não é um dado metodológico a priori do método científico, mas o oposto disso: uma conclusão a posteriori da prática científica. Em outras palavras, não é que a ciência abre mão de buscar o sobrenatural: é que, depois de séculos de investigação científica, o sobrenatural nunca deu as caras e, portanto, os cientistas simplesmente concluíram que não vale a pena perder tempo com ele.

Historicamente, a visão do naturalismo como uma conclusão, e não um pressuposto, da ciência parece bem sólida: a evolução de práticas estéreis, como alquimia e astrologia, para ciências frutíferas, como química e astronomia, envolveu o descarte dos elementos sobrenaturais. Não é preciso muita imaginação para ver que esse não é um resultado necessário do processo: se horóscopos, orações e transmutações alquímicas funcionassem, não haveria motivo para descartá-los do processo científico. Se foram descartados, foi por um motivo prático, não por uma picuinha metodológica.

Nessa visão, que se opõe ao acomodacionismo, a ciência põe o sobrenatural de lado não por uma questão de delimitação filosófica, mas porque ele é irrelevante. O salto do irrelevante para o inexistente é filosoficamente questionável, mas pragmaticamente sólido. Então, neste ponto de vista, a ciência mostra que, para todos os fins práticos, o sobrenatural — inclusive Deus — não existe.

O que nos traz de volta ao debate sobre a “cura” da homossexualidade. Os críticos do “pacto acomodacionista” sempre se queixaram de que os religiosos nunca tiveram pruridos em violá-lo, e este é mais um caso em tela.

O conceito de doença mental é bastante suscetível às condições sociais: os esquizofrênicos de hoje são os profetas e messias de ontem, e nossa sociedade atual premia regiamente diversos comportamentos psicopatas e sociopatas. A única medida razoável de se um determinado estado-de-ser representa ou não doença mental é o sofrimento e o perigo que traz a quem se encontra nele, e às pessoas ao redor.

No consenso da comunidade internacional de saúde mental, a homossexualidade não é uma doença. Some-se a isso o fato, também largamente atestado, de que tentativas de “curá-la” levam a resultados inócuos ou (como no caso de Turing) trágicos. Então, por que o debate?

Alguém poderia sugerir que, por conta de certos tipos de crença religiosa e condicionamento social, a homossexualidade representa uma fonte de sofrimento para algumas pessoas e, portanto, se encaixa numa das condições definidoras de doença mental. É possível, porém, afirmar que a patologia encontra-se, de fato, nas crenças e condicionamentos, não no homossexual: são a religião e a sociedade que precisam de tratamento, não o indivíduo. Por exemplo, um estudo publicado em 2003 aponta que “o desenvolvimento de uma identidade homossexual é um processo conectado a graves perigos (…) muitos adolescentes não recebem o apoio necessário porque a heterossexualidade é considerada a norma na maioria das culturas.” O perigo, portanto, não é intrínseco: nasce na norma cultural arbitrária.

Um paralelo com o canhotismo — o uso preferencial da mão esquerda — não é difícil de traçar. Assim como ser gay, ser canhoto parece derivar de uma combinação mais ou menos complexa de predisposição genética e influência ambiental. Assim como ser gay, ser canhoto já foi visto como socialmente inaceitável. E, no entanto, hoje preferir usar a mão esquerda é, no máximo, uma fonte inócua de curiosidade.

A falsa polêmica mostra os limites da tese acomodacionista. No paraíso do acomodacionismo, a ciência trata das questões de fato e a religião, das de moral. Mas, e quando chega a hora de ceder uma “questão moral” para a lista das questões de fato, o que acontece? Uma tentativa, não raro violenta, de reapropriação, que deixa vidas destruídas pelo caminho. Foi o que vimos no caso do heliocentrismo, da evolução, do status do embrião humano e, agora, da “cura gay”.

Acredito que esses dolorosos cabos-de-guerra continuarão a existir enquanto a comunidade científica insistir na versão, apenas aparentemente conveniente, do naturalismo como condição metodológica, de certa forma equivalente, no debate público, a preferências outras — por exemplo, a da revelação divina ou da exegese da Escritura. Da mesma forma que o criacionismo, nessa visão, pode ser abordado como “explicação alternativa” à evolução em aulas de teologia e religião, nada impede que a homossexualidade, eventualmente tratada de modo sóbrio e natural nas aulas de biologia ou de educação sexual, seja abordado como pecado vergonhoso nas de religião, reforçando, assim, a patologia social.

O que precisamos, mesmo, é de mais gente disposta a proclamar, no debate público, o naturalismo como conclusão lógica da ciência: reafirmando, sempre que necessário, que o sobrenatural não pode ser fonte de autoridade a respeito de nenhuma questão, moral ou de qualquer outro tipo, porque, pura e simplesmente, ou não existe, ou existe, mas é irrelevante. Por conseguinte, seus arautos, usem eles ternos ou batinas, não sabem do que estão falando — e não deveriam ser levados a sério.

Fonte: Amalgama Atualidade  e Cultura