Carta os LGBTTT e o Congresso Nacional por Enézio de Deus
A via atualmente mais eficaz para o reconhecimento dos direitos das(os) LGBT, no Brasil, tem sido a judicial, mesmo diante do conservadorismo de parte da magistratura, do Poder Judiciário. Se, por um lado, preocupa o silêncio do Poder Executivo e a sua falta de coragem para com a efetivação de políticas público-governamentais de combate ao preconceito com base na orientação sexual e nas nuances de gêneros dos cidadãos, mais assustador, ainda, é o descompromisso do Poder Legislativo – no âmbito federal – para com as chamadas minorias sexuais.
A urgência de os magistrados realizarem uma interpretação justa, humana e socialmente útil das leis, capaz de reconhecer os direitos emergentes, por exemplo, das uniões entre homossexuais e de lhes possibilitar o acesso à justiça, compreende-se e justifica-se, dentre outras razões, pela omissão do Poder Legislativo e, em espacial, do Congresso Nacional, que, até o momento, não contribuiu para afirmar a dignidade e o respeito efetivo a milhões de cidadãos brasileiros vitimados pelo preconceito e, outrossim, pela homofobia (sentimento de aversão à orientação homoessencial, que se constata socialmente).
O estágio atual do conhecimento humano impossibilita juízos discriminatórios e omissões estatais, com base na orientação sexual das pessoas. No Brasil, país marcado pela exclusão social, todos sabem da necessidade de o Poder Legislativo aprovar Projetos de Lei referentes às questões sócio-econômicas de amplitude relevante (distribuição de renda, por exemplo), visando a atenuar “a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III, CF). Mas o fundamento da atuação legislativa, para com essas problemáticas que demandam atuação especial (concentração da riqueza e exclusão social) não pode servir de pretexto, para segregar, do amparo legal, situações diversas que marginalizam cidadãos idênticos, em dignidade e em direitos, a todos os outros – como as(os) LGBTTT.
Até o momento, a discriminação por omissão, percebida na esfera do Congresso Nacional assenta-se em concepções que jamais poderiam interferir na atividade de representantes legítimos da sociedade, pois são insustentáveis do ponto de vista científico. Os argumentos das citadas bancadas católicas e evangélicas, por exemplo, refletindo interpretações ou posicionamentos ideológicos, doutrinários, subjetivos e culturais delimitados, não devem se sustentar como óbice à aprovação de projetos que, por exemplo, equiparem os efeitos jurídicos das uniões homossexuais aos das relações heterossexuais ou equiparem, por exemplo, a homofobia ao racismo. O que fundamenta tais projetos não são doutrinas (ou questões de fé), mas a cidadania e a dignidade de pessoas e de famílias excluídas do ordenamento positivo, por conta de um traço fundamental, que não mais pode ser alvo de discriminação: a orientação afetivo-sexual. Se essa, voltando-se para o mesmo sexo, fere dogmas ou a forma particular de interpretação bíblica desta e daquela igreja ou doutrina, o Estado não tem a ver com isso, devendo tratar e conceber os seus cidadãos, como “iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5º, caput, CF ). Caso contrário, abre mão da racionalidade (prova científica) e afronta princípios constitucionais elementares, admitindo influências de ordem normativo-ideológico-religiosa. O silêncio estatal, além de perverso, é desvio de compromisso (para com os Direitos Humanos), por omissão, que rompe o pacto social erigido com a Lei Maior de 1988, pois deixa sem reconhecimento e regulação efetiva o atributo fundamental à livre afetividade (e, pois, à constituição familiar e ao exercício da maternidade/paternidade) de milhões de homossexuais brasileiros. Como afirma o Prof. Dr. Paulo Bezerra, na obra “Acesso á Justiça” (Ed. Renovar), sendo “possível produzir leis direcionadas a beneficiar alguns poucos, por que não fazê-las para beneficiar a maioria? Se essa possibilidade se dá ao legislador, então que se produzam leis mais justas”.
O acesso à justiça, para além do aparelho judiciário (do processo e da atividade jurisdicional) encontra na produção/omissão legislativa o maior obstáculo e a nascente impeditiva do exercício pleno da cidadania, por parte das chamadas minorias sexuais. Sem dúvida, o direito constitucional a uma ordem jurídico-social justa só se estenderá, por exemplo, aos homossexuais (enquanto categoria hipossuficiente, frente ao preconceito e à intolerância), quando os membros do legislativo compreenderem a incoerência ético-profissional de atuarem motivados ou influenciados por preconceitos ou por dogmatismos engessados. Realmente, o dever de quem legisla ou assume função no Poder Legislativo é produzir leis para o devido amparo a todos os cidadãos, sem discriminações injustificadas. Afinal, podemos nos questionar o que poderá ocorrer, no Brasil, com a crescente fragmentação do Congresso em bancadas e com o crescimento dos movimentos pentecostais e fundamentalistas… Os subgrupos se unem para legislar para “os seus”… E os demais cidadãos, que são “iguais perante a lei” em direitos e obrigações, onde ficam? Certamente, no lugar onde se encontram os homossexuais frente ao Estado: bem vulneráveis e desamparados, como se não existissem! Então, é válida outra indagação, parafraseando o poeta: “que país é este?”
É lamentável perceber que nenhum dos Projetos – verdadeiras ações de cunho reparatório-afirmativo -, por ora existentes no Congresso Nacional, que poderiam beneficiar os homossexuais, foi aprovado e, pois, transformado em lei. O retrocesso dos parlamentares com relação ao Projeto nº 122/2006, por exemplo, significou uma grande perda de oportunidade de ser criminalizada a homofobia no Brasil – país que mais mata LGBTTT no mundo.
É de se questionar em até que ponto a influência preconceituosa das citadas bancadas impede a votação, ou tal óbice é fruto, na verdade, da falta de compromisso efetivo e de vontade política de parte dos parlamentares, para com a situação de desamparo legal das(os) LGBTTT – muitas(os) das(os) quais os elegera, em contrapartida, esperando uma atuação legiferante isonômico-cidadã, ou seja, para todos, sem distinção. É necessário, pois, que as(os) atraídos afetivamente pelo mesmo sexo e as(os) transgêneras(os) escolham melhor os seus representantes políticos, porque, sem que seja vencida tal realidade discriminatória, continuarão a ver negligenciados direitos e garantias constitucionais fundamentais, em virtude de preconceito intolerante, além de correrem o risco de a homofobia se intensificar, partindo das próprias estruturas estatais – das chamadas “casas da democracia”, para os outros níveis de poder. Com efeito, estas bases não podem se manter, pois tal violência ao princípio isonômico compromete, ao mesmo tempo, a dignidade humana e a própria legitimidade democrática do ordenamento. Por isso, é evidente e legítima “a possibilidade de se cobrar do legislador que regule as situações que a jurisprudência consolida”, como bem aponta Maria Berenice Dias.
Elegendo-se um legislativo comprometido com os princípios constitucionais e com a efetividade dos direitos humanos, ele, como produto do Direito, pela função que lhe cabe constitucionalmente, “estando em frente em matéria de visão do justo, será o veículo de justiça mais efetivo e eficiente”, como confirma o já citado Prof. Paulo Berezza.
Em que pesem os preconceitos evidenciados nas decisões de muitos magistrados, a atividade jurisprudencial tem sido o instrumento de justiça mais eficiente, ainda que tênue, em matéria de direitos emergentes das uniões homossexuais e contra a discriminação com base na orientação sexual. Devido à proibição de os juízes se eximirem de julgar (de despachar ou sentenciar), alegando lacuna ou obscuridade na lei – art. 4º, LICC e art. 126, caput , CPC -, e ante o princípio da inafastabilidade, segundo o qual todos as lesões ou ameaças a direitos devem ser submetidos à apreciação do Poder Judiciário – art. 5 o , XXXV, CF -, compreende-se a postura não omissiva desse (ao contrário da atuação de muitos membros do Congresso Nacional). Mas a discriminação também está presente nas estruturas do Poder Judiciário. De fato, “a lei não é – nem deve ser – apenas exortação. Se perguntado, qualquer juiz nega que a declaração de direitos e garantias fundamentais seja apenas uma carta de intenções. Mas, na prática, há (e seu nome é legião…) aqueles dispostos a negar efetivação a tais garantias” – como reforça Paulo Bezerra.
O Direito Constitucional de acesso à justiça, bem mais amplo do que o simples aceso ao Poder Judiciário, através do exercício do direito de ação, não será garantido às(aos) LGBTTT, enquanto essas(es) não tiverem, outrossim, alcance a um processo justo, que viabilize a aplicação mais sintonizada possível da legislação infraconstitucional com a Constituição Federal, com a realidade fática hodierna e com as suas mutações. Atualizar o sistema jurídico e, em especial, o ordenamento, mediante a conformação da lei com o justo arranjo social é a maior garantia que se pode auferir do labor jurisprudencial, pois dessa conformação depende a viabilização dos demais direitos. Para tanto, o juiz deve se soltar das amarras. Há de recuperar a capacidade de indignação, diante da exclusão social de milhões de cidadãos, diante do preconceito, sob suas diversas matizes.
No que tange, por exemplo, à adoção de infantes por pares homossexuais, esperar a regulação normativa deste direito subjetivo por ora, das pessoas que convivem em verdadeiras uniões sólidas afetivas, através do Congresso Nacional, significa continuar vendo excluídas crianças e adolescentes de ambientes familiares estáveis e, em particular, dos direitos decorrentes de uma filiação bi-parental (mais plena) e, pois, de uma convivência mais diversa (com dois pais ou duas mães), que, sem dúvida, vêm-lhes ao melhor interesse. Se matérias menos polêmicas – por conta do tempo em que já são debatidas – não foram objetos de aprovação legislativa, mediante promulgação de lei federal, o deferimento do pedido de adoção a casais homossexuais verificar-se-á, primeiro, no âmbito judicial, pois já há abertura e antecedentes suficientes para tanto. Independente, com efeito, de possuírem uma visão dogmático-positivista ou crítico-transformadora, os magistrados não estão presos ao ordenamento literal positivo (enquanto fundamento imediato das suas decisões), pois esse deve ser interpretado, frente às possibilidades dentro do sistema jurídico, com vistas à melhor adequação social ao caso concreto. Pelo primado do realismo jurídico, quando a legislação está em descompasso com a realidade social, deve o juiz interpretá-la de forma a conformá-la com os fatos, dados inegáveis.
Diante da ultrapassada e inconcebível omissão do Poder Legislativo Federal, aberto está o caminho da criação jurisprudencial que, inevitavelmente e de modo gradual, tem ampliado o direito constitucional de acesso a uma ordem jurídica justa, igualitária e, socialmente, útil aos homossexuais que, solteiros ou em convivência afetiva estável, procuram o Poder Judiciário, para que o Estado lhes “diga” o direito. Como esse direito não precisa estar literalmente previsto na norma escrita, a analogia (aplicação de leis semelhantes que regem casos parecidos com os sub judice ) pode conduzir a uma fundamentação racional e equânime, capaz de efetivar direitos e consagrar diversas garantias relevantes a uma vida digna, como a colocação, por exemplo, de crianças e adolescentes, em seios de famílias homoafetivas bi-parentais substitutas, através do instituto de adoção – defesa principal do meu livro sobre o tema, publicado pela Editora Juruá (atualmente na 5ª Edição).
Para fim de texto e início de ações concretas, é preciso que as(os) LGBTTT e as(os) cidadãs(ãos) comprometidas(os) com uma ordem social justa reflitam quais membros dos Legislativos – municipal, estadual e federal – estão elegendo, para que a semi-aberta ou fechada porta do reconhecimento dos seus direitos não continue segregando e gerando injustiças inconcebíveis… Esperar benefícios somente do Judiciário e do Executivo é postura míope, que compromete o surgimento de leis mais condizentes com o atual estágio da humanidade. Contra a intolerância ou o medo omissivo, que permeia muitas “casas da democracia”, basta a verdade inexorável de que é para o povo, isto é, para todos, indistintamente e independente de qualquer natureza, que os legisladores tem o dever de legislar. No dia que assim se orientar a produção legislativa, haverá mais bem-estar e justiça social, em todas as esferas…
Enézio de Deus é Gestor Governamental/Ba; Advogado; Mestrando em Família na Sociedade Contemporânea (Ucsal); Autor dos livros: A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais (5ª edição, Editora Juruá); Retirolândia: Memória e Vida (Editora Juruá); Co-autor dos livros: O Regresso (Editora Juruá); Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo (Editora Revista dos Tribunais); Professor de Direitos Humanos (ACADEPOL-Ba e FTC-EAD).
eneziodedeus@hotmail.com