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Apesar de censura a espetáculo em Salvador, travesti sobe ao palco encenando a vida de Jesus Cristo

Redação,
28/10/2017 | 13h10

Foto: Genilson Coutinho

A notícia da censura do espetáculo ‘O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Ceu’ que seria apresentado na última sexta-feira (27), no Espaço Cultural da Barroquinha por meio de uma liminar, causou revolta na classe artista e na militância.Mas não tirou o brilho da estrela Renata Carvalho , atriz e travesti que interpreta o monólogo.
Como a liminar proibia a apresentação no Espaço Cultural da Barroquinha e não o espetáculo, a produção do Festival Internacional de Artes Cênicas transferiu a sessão para o Icba que contou com a forte presença do público visivelmente emocionado com a vitória da arte em tempos tão difíceis para a classe artística.

Foto: Genilosn Coutinho

A apresentação contou com enorme presença da classe artista que compareceu para apoiar. Em conversar com o Dois Terços, Renata contou que foi um susto pois poderia acontecer em outro lugar como já aconteceu em Jundiaí, mas que Salvador foi uma surpresa.
“Fique muito triste primeiro por ter acontecido em Salvador, terra de gente guerreira e berço da cultura. E segundo, ele (juiz) não assistiu o espetáculo, o juiz teve acesso somente ao texto e por conta de uma posição fundamentalista e homofóbica censurou a arte. Foi no MASP, agora conosco, precisamos urgente combater esse absurdo”, pontuou Renata.

Quem também concorda com Renata, é o professor de história Diego Ramon, “são tempos difíceis e que nos sinaliza que precisamos abrir os olhos e nos organizamos pois essa onda conversadora vem se organizando enquanto ficamos observando.
Vejo essa limar como uma agressão e violência aos nossos direitos e não podemos em momento algum deixar essas barbaridade”, ressalta o educador.

Para Fernando Guerreiro, diretor-presidente da Fundação Gregório de Matos (FGM) “a classe artística e a sociedade precisam frear essa movimentação de censura que tem repercussões gravíssimas, não só para a classe artística, mas para a liberdade democrática”
Rose Lima, diretora artística do Teatro Castro Alves (TCA) , que também esteve presente e se manifestou sobre o assunto.

Não aceitaremos censura nem difamação. #342Artes

Veja o vídeo abaixo.

Nota Pública – Censura na Bahia

Foto: Genilson Coutinho

Em 2017, o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – FIAC Bahia – completa dez anos e trouxe como questionamento motivador de sua curadoria a pergunta “Quem vai contar sua história?”, criando um painel de múltiplas narrativas possíveis a partir das artes cênicas em nosso tempo. A partir dessa escolha, os espetáculos se alinhavam com essa proposta estética, afetiva e reflexiva. Espetáculos como O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, que seria realizado em duas sessões, nos dias 26 e 27/10, no Espaço Cultural da Barroquinha.
Devido ao sucesso em suas temporadas anteriores pelo Brasil, a peça era uma das grandes expectativas do público, que esgotou os ingressos em poucas horas após a abertura da bilheteria. A primeira sessão foi realizada em clima de celebração e bastante aplaudida. No entanto, às 17h do dia 27, e dificultando qualquer possibilidade de recurso em tempo hábil, a Fundação Gregório de Mattos, responsável pela gestão do Espaço Cultural da Barroquinha, foi notificada de uma decisão emitida por um juiz de primeira instância da 12a Vara Cível de Salvador para que fosse impedida de abrigar a realização da segunda sessão.

Foto: Genilons Coutinho

A decisão judicial trazia como um de seus fundamentos a laicidade e alegava que a parte acionada desrespeitou o princípio constitucional previsto no art 5o, VI, qual seja a liberdade de consciência e de crença, pois não se pode “tentar, assim, eliminar os símbolos/crenças religiosas mais tradicionais do povo, com narrativas debochadas e fantasiosas, como que lhe arrancando as raízes”. Situação semelhante já havia acontecido em outras cidades em que houve tentativa de censura à peça, mas com um desfecho completamente diferente do que aconteceu ontem em Salvador.
Em Belo Horizonte, por exemplo, a juíza federal titular da 28ª Vara Federal, Cláudia Maria Resende Neves Guimarães permitiu a realização do espetáculo ao indeferir o pedido de tutela de urgência de caráter antecipatório por entender que “a liberdade de expressão é um elemento essencial em qualquer regime democrático, permitindo que a vontade coletiva seja formada através do confronto livre de ideias, em que todos os grupos e cidadãos devem poder participar. Em princípio, nenhuma ideia, escrito, obra de arte, peça teatral, etc, pode ser censurada”.
Também em Porto Alegre, o juiz José Antônio Coitinho da 2a Vara da Fazenda Pública se posicionou contra a censura do espetáculo e indeferiu o pedido liminar que tentava suspender a exibição da peça. Segundo ele, “Não se pode simplesmente censurar a peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, sob argumento de que estamos em desacordo com o seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano”.
Em Salvador prevaleceu a decisão de um juiz que, mesmo sem conhecer o espetáculo e baseado exclusivamente nas alegações dos proponentes da ação, censurou a realização da sessão no Espaço Cultural da Barroquinha.
A citação à Fundação Gregório de Mattos fez com que o público – que já havia adquirido ingressos e estava no local – aprecisse o texto em outro espaço da cidade: Teatro do Goethe-Institut (ICBA). Vale ressaltar que muitos gestores ofereceram seus teatros para receber o espetáculo assim que souberam da decisão. O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu parte de parábolas e utiliza contação de histórias para pregar valores como o respeito à tolerância, à diversidade, à liberdade e sobretudo ao amor.

NOTA PÚBLICA – Comissão da Diversidade Sexual e Enfrentamento à Homofobia da OAB BA
A Comissão da Diversidade Sexual e Enfrentamento à Homofobia da OAB BA vêm mostrar sua preocupação diante da decisão liminar da lavra do juiz Paulo Henrique Albiani Alves na ação tombada na 12ª Vara Cível e Comercial de Salvador sob o n.0566408-05.2017.8.05.0001, em que determina a suspensão da apresentação da peça teatral “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, em flagrante censura.
A peça cuja apresentação foi suspensa se propunha a promover uma “reflexão sobre a intolerância sofrida por transgêneros e minorias em geral”, conforme divulgação dos produtores, e para isso representava Jesus Cristo na atualidade como uma mulher trans. O texto, escrito por uma dramaturga trans e encenado por uma atriz trans, vale-se da liberdade de expressão encontrada em sua manifestação mais ampla nas artes não para debater religião ou gerar questionamentos e críticas ao cristianismo, e sim para pregar a liberdade, a igualdade e o respeito à diferença como lições éticas universais.
A liberdade de expressão artística é constitucionalmente garantida, embora não seja absoluta. Ela encontra limite em direitos e garantias fundamentais alheios, como a liberdade religiosa e de credo. Não pode ela, portanto, ser usada como álibi ou fundamento para ataques ou ofensas à fé alheia. De outro lado, não se pode confundir posições e percepções individuais com a religião a ser protegida. A mera reinterpretação de símbolos religiosos, especialmente os que estão tão profundamente integrados à cultura, não pode ser considerada ofensiva à liberdade religiosa por afrontar o gosto ou a percepção de alguns fiéis, se não se dá de forma jocosa ou depreciativa. Mais que demonstrar a força e integridade da própria fé, a indignação com a encenação de um Jesus atual por uma mulher transexual, que propõe uma reflexão de combate à intolerância contra as minorias marginalizadas, evidencia o preconceito e a lgbtfobia, pois tal indignação não se apresenta quando se propõem outras representações de Jesus, como um homem heterossexual eventualmente casado. Vale relembrar que a mesma indignação por ver a imagem de uma mulher trans crucificada causa repulsa, enquanto a mesma imagem crucificada de um astro de futebol numa capa de revista é vista com maior naturalidade, mesmo ambas se valendo de um símbolo originalmente cristão que foi assimilado culturalmente por força da tradição, para representar e transmitir uma mensagem de perseguição e sofrimento, como a sofrida por Jesus.
A proteção à liberdade religiosa é defendida de forma intransigente pela OAB, como deve ser por qualquer instituição democrática. A liberdade de expressão também. E do mesmo modo que não se deve permitir que a liberdade de expressão seja invocada para sustentar e autorizar ofensas deliberadas e depreciativas contra qualquer religião, também não se pode aceitar que a liberdade religiosa seja usada como escudo jurídico para a prática da discriminação e preconceito racial, étnico, de gênero ou de orientação sexual, como se afigura no caso. Condutas precipitadas, como a do magistrado, apenas corroboram para o resgate de práticas tendentes ao totalitarismo.
Para Nietzsche, a força criativa do humano que está presente na arte (como em nenhum outro recurso) é o que nos dá condições para enfrentar os momentos difíceis da vida.  Noutras palavras: a arte é um recurso humano para lidar com a dificuldade e ao proibir a encenação artística o Estado-juiz está retirando o direito das pessoas (inclusive das pessoas LGBT, que são diariamente atacadas, em especial as próprias pessoas trans) de terem a oportunidade de lidar com a violência de modo criativo, com potência para criar possibilidades. A vivência democrática é intrinsecamente complexa e plural, diversificada, e, portanto, difícil. O desejo por um mundo mais simples, com uma harmonia “pacífica” e sem quaisquer atritos pode levar a posturas intolerantes e ditatoriais.
É de se salientar, também, que a arte não está comprometida com a realidade. Ao contrário: ela é escape do real, daí porque ficcional, e trabalha com a metáfora e com o simbólico, traduzindo sentimentos, percepções, interpretando e reinterpretando fatos da vida. Por isso, a representação reinterpretada de uma figura religiosa histórica serve justamente à transmissão de uma mensagem sob outra forma, e que no caso em tela era justamente uma mensagem de amor, tolerância e inclusão, não devendo ser proibida se não adotar, como de fato não adotou, qualquer tom jocoso, de mero deboche ou depreciativo. Aliás, a percepção de que a encenação de Jesus por uma atriz trans é depreciativo só pode ser fruto da visão marginalizada e discriminatória dedicada às pessoas trans.
Nenhum direito é absoluto e é no convívio democrático entre direitos e entre pessoas que se constrói uma sociedade livre e justa. Por isso, não se pode admitir a censura prévia de um espetáculo privado, reservado, com acesso dirigido apenas àqueles que quiserem assisti-lo, sem divulgação ostensiva de seu conteúdo, em razão do sentimento particular de alguns de violação de sua fé. Àqueles que não gostaram da proposta teatral, lhes assiste o direito constitucional de não comparecer ao evento ou expressar livremente sua oposição. Não é democrático encerrar a possibilidade de convívio harmônico de dois direitos fundamentais, mediante o cerceamento de um deles, quando não comprovado o seu abuso. Não se pode admitir, enfim, o uso de um direito fundamental digno de respeito e preservação como ferramenta de opressão à diversidade na expressão artística.
Registramos, por todo o exposto, nossa indignação com a referida decisão liminar, ao tempo em que a OAB adotará as medidas cabíveis buscando salvaguardar a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito e os direitos humanos, conforme preconiza o art. 44, I, do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (Lei. 8.906/1994).
Salvador-BA, 30 de Outubro de 2017.
Filipe de Campos Garbelotto
Presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Enfrentamento à Homofobia
(OAB BA)
Leandro Lopes Pontes Paraense
Vice-presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Enfrentamento à Homofobia (OAB BA)