Na ficção científica, ser diferente é bom

Genilson Coutinho,
11/04/2011 | 01h04

Todo mundo já ouviu falar de Star Trek ou Jornada nas Estrelas. Quem não acompanhou a série de TV ou os filmes que a série rendeu pôde conferir o remake de 2009, dirigido por J. J. Abrams e com Chris Pine, Zachary Quinto e o próprio Leonard Nimoy (o Spock da série original). Apesar das intensas discussões sobre preconceitos implícitos nas obras de ficção científica, horror e fantasia, o que pouco se sabe é que Star Trek foi fundamental para os direitos das minorias políticas, a começar pelos afro-descendentes americanos.

Os tempos eram bastante difíceis nos anos 60 quando Star Trek começou a ser exibida nos Estados Unidos. A população afro-descendente vinha lutando por seus direitos civis, as mulheres tinham acumulado poucas conquistas e o feminismo vinha ganhando força na América do Norte. Era a idade da contracultura. No que diz respeito aos LGBT, Stonewall ainda estava prestes a acontecer na virada da década. Em meio a esse contexto tumultuado, Nichelle Nichols foi selecionada para interpretar Uhura em Star Trek, chocando parte da sociedade, afinal era uma mulher negra em um papel central. Conta uma anedota que Nichols, em tour promocional pelo sul do país, encontrou-se com Martin Luther King – ativista pelos direitos civis nos EUA -, a quem confidenciou que estava cogitando largar a série de TV. Ao ouvir isso, foi repreendida abruptamente por King. No mundo ficcional da Enterprise, ela era vista como deveria ser, como igual a qualquer outra mulher americana.

Mundos ficcionais são os lugares imaginários onde as histórias se desenrolam. Os mundos ficcionais criados pela fantasia, pelas histórias de horror e pela própria ficção científica permitem personagens diferentes porque naquelas histórias eles deixam de ser uma ameaça à ordem social. Nós – LGBT -, negros, imigrantes, e demais minorias políticas somos ameaçadores porque temos hábitos e comportamentos que são estranhos à maioria. Nos casos de violência homofóbica, somos agredidos porque o nosso comportamento afetivo é não apenas repudiado, mas considerado prontamente repulsivo. Como é que se reage ao que causa repulsa? As pessoas fogem ou as pessoas tendem a tentar exterminar a ameaça.

Mas, as pessoas não são homofóbicas porque elas são malévolas ou estúpidas. As pessoas são homofóbicas porque elas não tiveram educação decente e acesso a cultura. Somado a isso, vivemos em uma sociedade machista e pouco sofisticada, ainda atada ao misticismo e à surperstição religiosa. Não condeno a religião, apenas acho que lugar de culto é dentro das igrejas, templos e demais locais considerados sagrados para cada respectiva religião etc. A rua e a vida pública são espaços para o secularismo, afinal o Estado é laico, como está previsto na nossa prolixa Constituição. As forças hegemônicas da sociedade tendem a temer o que é diferente porque não o compreendem. Por isso, insisto que a educação e acesso a conteúdo livre de qualidade via internet podem nos levar a uma sociedade melhor e culturalmente justa.

Nos mundo ficcionais da ficção científica, do horror, da fantasia, a ameça é contra todos nós – ricos, pobres, negros, brancos, vermelhos e amarelos, gays, héteros, bis. É o horror inominável, que não se define, ou que se personifica no alienígena de Alien – o 8º passageiro (1979); ou na presença demoníaca de Atividade Paranormal (2007). É o horror do canibalismo, encarnado nos zumbis de Madrugada do Mortos (2004). É, portanto, uma questão de grau: se algo ameaça mais, ignoramos as diferenças socioculturais e nos unimos contra o monstro “pior”. As obras ficcionais de fantasia, horror e ficção científica exercitam – e, concomitantemente, dispersam – esses nossos sentimentos de aversão para com o diferente ao mesmo tempo em que nos ensinam a conviver melhor pois, afinal, somos todos humanos – e não fantasmas, alienígenas ou zumbis canibais.

Foto: Reprodução

por João Barreto

about.me/jaobarreto

João Barreto
Jornalista e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. É analista de comunicação e cultura, especialmente de poéticas audiovisuais. Também tem interesse em desenvolvimento sustentável.