A revolução de um beijo

Genilson Coutinho,
04/02/2014 | 16h02

Por Gésner Braga

Demorei algum tempo até assistir a um capítulo da novela “Amor à Vida”, de Walcyr Carrasco, exibida pela Globo e encerrada ontem. Não tenho costume de assistir a novelas, mas foram tantos comentários ao desempenho de Mateus Solano que resolvi conferir. Porém, meu primeiro contato e minha primeira impressão com a obra não poderiam ter sido piores. Lembro-me que foi na ocasião em que Felix tentou matar Atílio e tudo deu errado. Toda trama daquele capítulo me pareceu tão inverossímil e absurda que fiquei desmotivado a repetir a experiência.

Naquela ocasião, postei um comentário no meu perfil do Facebook e a história rendeu. Alguns amigos julgaram que eu estava sendo rigoroso demais. Alegaram que novelas são feitas para entreter, não são um convite à reflexão o tempo todo e não têm um compromisso com realidade. São, sobretudo, obras de ficção onde tudo pode acontecer, inclusive o improvável, o impossível. Ok, concordo e exatamente por isso deixei de assistir a novelas há muito tempo. Elas costumam ser uma afronta à minha inteligência. E olhe que eu me julgo apenas mediano.

Porém, neste mundinho tão global e interativo, é uma tarefa inglória tentar me manter imune ao bombardeio de informações a respeito dos assuntos mais comentados do dia. Foi assim, acidentalmente, que fui seguindo o desenrolar da novela, dessa teia de histórias absurdas que faziam esgotar minha dose de paciência, que já é baixa. E também nesse compasso sempre acidental, acabei por acompanhar a construção de uma história que passou a me interessar deveras e atiçar o meu espírito da ativista social que quer tornar visíveis questões caras à diversidade.

Ali estava Felix, a bicha má de “Amor à Vida”. As primeiras notícias da sua vilania, antes mesmo de a novela estrear, despertaram a desconfiança e a ira de alguns que viram nele um risco de validação da homofobia, traço marcante da nossa cultura machista. Todos sabemos o quanto vilões são instrumentos sedutores e conhecemos sua capacidade em conquistar audiência. Havia aí um indício dos planos de Walcyr? Talvez.

Aos poucos – ou mesmo muito rapidamente – fomos nos dando conta de uma certa coerência no delineamento do perfil psicológico do nosso vilão gay. Não era um vilão por acaso, não era uma perversidade inata (apesar de que sabemos que nunca é). A maldade de Felix nasceu da homofobia declarada de um pai que não media esforços em demonstrar toda sua rejeição, seu desprezo, sua indiferença, seu ódio ao filho. Boa construção!

Então veio a reviravolta. A homossexualidade reprimida de Felix foi exposta, mas ele recebeu o apoio incondicional da família, exceto do pai. Os diálogos com a avó, a mãe, a irmã e o filho são discursos de respeito à diversidade dignos de nota. Mas era cedo para a redenção do nosso vilão e ele precisava sofrer bem mais. Ele conheceu a ruína completa, o fundo mais claustrofóbico do poço, etapa necessária à expurgação que faria nascer o herói. E então? Onde foi parar aquela desconfiança de alguns a que me referi? Teria eu ouvido um suspiro de alívio?

Em paralelo, o autor nos apresentou Niko, um personagem nascido de uma história secundária que, com o talento do ator de Thiago Fragoso, ganha status de protagonista. E justo quem? Um homem feminino, delicado, cheio de trejeitos que o fariam, outrora, compor o núcleo de comédia de uma novela. Mas, não, outro destino lhe estava reservado e ele se tornou o lindo “carneirinho”, o namoradinho gay do Brasil. Quem diria!

Assim, a sagacidade de Walcyr Carrasco fez surgir uma admirável história de amor entre dois homens. Uma história tão romântica, angelical e irretocável que fez o país inteiro torcer por um final feliz. Um final feliz entre dois homens… Fez também a audiência enxergar com olhos de aceitação a convivência salutar daqueles rapazes com duas crianças, uma delas adotada. E muito mais que isso, fez o público torcer por um beijo gay, algo impensável há poucas semanas.

Há quem diga que o beijo foi insosso, mas eu discordo. Foi um beijo na medida certa, doce, tão doce quanto aquela família ideal, quanto aquele casal perfeito formado por Felix e Niko, quanto aquele amor meticulosamente construído para conquistar os corações mais duros. Agora imaginem tudo isso acontecendo entre um casal inter-racial, como aquele que protagonizou o primeiro beijo gay da tevê brasileira, na série “Mãe de Santo”, da rede Manchete, em 1990. Nossa, isso seria divino! Naquela ocasião, um dos personagens foi interpretado por um baiano, meu amigo Rai Alves.

E como se não bastasse, Walcyr Carrasco coroa com êxito o final da sua história ao declarar a superação das diferenças entre pai e filho, fruto do amor incondicional maior que tudo. Ah, ele ainda apontou para a possibilidade da relação entre um homem e uma transexual, tudo isso em pleno horário nobre da tevê. Definitivamente, ele é um gênio. E contrariando o que foi dito nos primeiros parágrafos deste artigo, “Amor à Vida” nos levou sim à reflexão, a uma reflexão profunda sobre o que é diversidade. Um serviço primoroso à sociedade que o autor nos presta.

Parabéns, Walcyr!