Comportamento

Social

A Igreja católica e o movimento LGBTT em tempos de Francisco

Genilson Coutinho,
21/06/2014 | 10h06

papa

Por Daniel Silva*

Ao longo do último ano, desde a ascensão do Papa Francisco, as comunidades LGBTT mundo afora se surpreenderam e continuam a se surpreender com a posição de diálogo que o chefe da igreja católica adotou. A abertura parece ir além da mera intenção individual de “quem sou eu para julgar” e começa timidamente a se estender a outras esferas. Exemplo disto é que poucos dias atrás uma comissão da arquidiocese de São Paulo divulgou uma nota em defesa da dignidade da comunidade LGBTT, rapidamente seguida de uma nota da instituição que a posição da instituição e da comissão não necessariamente são iguais.

Muitos amigos meus aprovaram com cautela, seguida de surpresa e até mesmo de franca animação com as declarações do Papa e de outras figuras na hierarquia católica. Parece, a alguns, que existe quase uma vontade real de discutir e de tolerar, deixando de lado a retórica da condenação – ao menos de forma imediata. Certamente, um ponto que conta a favor da interlocução.

Contudo, creio que é necessário refletir a respeito de alguns pontos. A possível caminhada da Igreja católica em direção a tolerância de sujeitos LGBTT como membros mais ou menos plenos da Igreja nunca pareceu tão possível, como evidenciam os grupos que defendem a diversidade católica. Mesmo assim, é preciso pensar um pouco antes de criar expectativas de um futuro em que a Igreja “evolua” para a plena aceitação da identidades sexuais e de gênero que são divergentes na sociedade.

Necessário ter em mente que a Igreja católica possui quase dois mil anos. Nenhuma instituição sobrevive por tanto tempo sem de alguma forma tentar incorporar aos seus quadros ou acoplar a sua existência a movimentos de expansão social, de enriquecimento, de conquista. Ressalvada a guarda de alguns elementos que são centrais para a doutrina religiosa católica, como a impossibilidade da ordenação de mulheres, adaptações são possíveis. Usando a consequência lógica de um dos princípios da história, as instituições participam de uma negociação dos termos de dominação com os subordinados (THOMPSON, 2005, p.p. 18-19). Está incluído aí o processo de incorporação a determinada ordem, que se flexibiliza em alguma medida para acolher rebeldias tanto quanto possível. E creio ser possível usar este raciocínio para compreender a Igreja católica, sua atuação e seus afagos: o imperativo é manter a ordem na cidade de deus, o que implica enfrentar problemas como a evasão de fiéis e a modernização da igreja.

Um dos caminhos para manter a ordem na casa, e permitir que a Igreja sobreviva numa posição de importância na contemporaneidade é lidar com temas sensíveis, a exemplo da homossexualidade, pensando menos naquilo que separa gays, lésbicas, trans, queers, e Igreja católica, e mais nas possibilidade de acomodar fiéis LGBTT. Em lugar da condenação, a possibilidade de ingresso ou de diálogo. Não se sobrevive dois mil anos sem fazer concessões, e o debate a ser travado entre o catolicismo institucional e comunidades de gays, lésbicas e trans pelo mundo deve ter esta clareza.

Mas o avanços do debate não devem ser superestimados, e o cuidado não pode ser colocado à parte. Os sinais em direção ao diálogo carecem de medidas mais concretas, em primeiro lugar. E é a partir destas é que seria possível tentar entender até que ponto a Igreja católica está disposta a ir. Um bom exemplo: a aceitação de famílias homoparentais, e a concorrente retirada de apoio político a parlamentares fundamentalistas. Mais: a criação de pastorais LGBTT’s diocesanas, iniciativa que foi solicitada por exemplo pelo GGB em agosto de 2013 e que ainda não tem resposta do Arcebispo de Salvador.

Não é minha intenção soar pessimista ou atacar a Igreja católica, antes pelo contrário. Merecem ser saudadas algumas das atitudes tomadas no último ano. Mas é necessário não tomar coelho por lebre. Tolerância não é aceitação, e a distribuição de lugares pode ser bem menos igualitária do que a retórica parece sugerir. Pode ser que aja um cristão sentado no trono de São Pedro, digno de seu homônimo reformista são Francisco de Assis (KÜNG, 2013, passim). Mas eu gostaria de ter sempre em mente que Francisco de Assis era filho de um rico mercador.

Vou me permitir encerrar o texto com uma metáfora: no período colonial, era hábito das igrejas – a Santa Casa de Misericórdia da Bahia é um bom exemplo – separar os fiéis na Igreja conforme a cor, lugar social e riqueza. Pessoas pobres e de menos status sentavam cada vez mais distante do altar e do púlpito. É preciso tomar cuidado para não acreditar que a oferta de diálogo equivale a um convite para se sentar, de mãos dadas, na primeira fila dos bancos da Igreja. Talvez a mentalidade não seja tão distante assim na cabeça dos bispos católicos reformistas. E o lugar reservado seja mais para o fundo, perto das portas de entrada e de saída.

*Este texto é devedor de uma conversa com Gésner Braga no começo de 2014, comentado os acenos  papa Francisco aos gays. Agradeço ao amigo às provocações que me deram a ideia do texto.

* Daniel Silva é historiador. Bacharel em História pela UFBA (2009). Atualmente, é mestrando em História Social e desenvolve pesquisa sobre Homossexualidade, gênero e masculinidade entre os século XIX e XX. Contato: Página web | Mais publicações

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