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Vange Leonel admirava o masculino, sacrilégio para certas correntes

Genilson Coutinho,
17/07/2014 | 09h07

Vange Leonel

JOÃO SILVÉRIO TREVISAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Vange Leonel que conheci muito jovem, ainda nos tempos do grupo Somos, era admirável por seu senso de humor e inteligência, assim como pelo desejo de dialogar com seu tempo.

Casada com Cilmara Bedaque durante muitos anos, Vange era afável e inquieta ao pesquisar o que poderia constituir uma cultura lésbica.

Ela sempre manteve um olhar acurado e sofisticado sobre o lesbianismo enquanto história, estilo de vida e visão de mundo.

Tinha admiração legítima por lésbicas em tempos pioneiros, que levaram até o limite o seu desejo e sua liberdade, como as artistas da Academia de Mulheres de Natalie Barney, na Paris dos anos 1920. Escreveu uma linda peça sobre o grupo, traduziu e fez indicações editoriais sobre essas escritoras, especialmente a negligenciada Djuna Barnes, sua grande paixão.

Vange era uma lésbica que amava amar as mulheres. E que gostava muito do masculino. Vestia-se com botas lindas, coletes, correntes e roupas pouco indicadas a cocotas. Para isso não precisava botar pose de machona, pois sabia a diferença entre o macho, o machão e, mais ainda, o machismo.

Vange tinha legítima admiração pelo masculino, que lhe parecia cheio de encantos à sua disposição enquanto lésbica. Pretendia trazer ao seu feminino aquisições do masculino. “Por que não?”, perguntava. Isso podia ser considerado sacrílego para certas correntes da militância lésbica e feminista que, dentro e fora do Brasil, propugnaram o separatismo de gêneros.

Vange gostava de se pensar fora dos esquemas consagrados, inclusive na luta pelos direitos femininos. Lembro de uma vez em que tiramos uma foto juntos e vestimos roupas masculinas propositalmente semelhantes. Sua botina, de estilo S&M, me encantou, e ela até me indicou onde comprar.

Era um prazer encontrar Vange (gostaria que tivessem sido mais vezes) porque, além do carinho mútuo, ela sempre me instigava intelectualmente.

Não que estivesse preocupada em ser uma “intelectual” do lesbianismo. Simplesmente amava ser o que era. Não se preocupava em seguir o mainstream, nem integrar-se a grupinhos com tendências X ou Y.

Ela preferia estar na contracorrente, longe de qualquer posicionamento dogmático. A delícia de Vange era flanar nas ondas atrevidas do seu desejo. O que me leva a pensar como ela se aproximava das posições heréticas de um Pier Paolo Pasolini.

É uma pena ficarmos privados do sorriso iluminado de Vange Leonel.

João Silvério Trevisan é escritor, cineasta, ativista e pesquisador