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Uma vitória em um campo de batalhas

Dra. Bethânia Ferreira,
27/09/2015 | 11h09

brasil

A comunidade LGBT de Salvador esteve na pauta do dia, melhor dizendo, do mês de setembro. Diversas atividades foram realizadas: a Semana da Diversidade, quando tivemos a oportunidade de discutir sobre os mais variados temas; a Parada Gay, que reuniu toda a comunidade LGBT; o resultado favorável de algumas sentenças para retificação de registro; e, infelizmente, alguns novos casos de homofobia.

Ainda movida por essa atmosfera de diversidade, hoje falarei de um tema que importa em um avanço significativo para a comunidade de pessoas transexuais de Salvador. Sim, meus caros, essa população teve uma vitória em números e em posicionamento jurisdicional, no que se refere à retificação de registro civil – nome e sexo – de pessoas trans. E nada mais lógico que começar, pela Defensoria Pública, o movimento para alteração de registro.

Em novembro de 2013, em uma reunião realizada com a comunidade LGBT, um tema apresentado como demanda recorrente era a retificação de registro civil de pessoas trans. Diante da demanda apresentada fizemos reuniões sucessivas até que concluímos a necessidade de criação de uma ação constante e de um posicionamento político-institucional da Defensoria Pública sobre o tema.

Criamos um posicionamento institucional, fortemente baseado no Projeto de Lei n. 5002/2013 – Lei da identidade de gênero – e iniciamos em maio de 2015 uma atividade sistemática de atendimento às pessoas trans que desejassem retificar seu registro civil. Essa movimentação institucional, que causou muito burburinho e inovação, foi a semente da transformação que movimentou algumas instituições em Salvador e que culminou em uma resposta jurisdicional condizente com o princípio da dignidade humana.

A Sociedade Civil provocou a Defensoria Pública com suas demandas, e a Defensoria Pública provocou outras instituições, o que gerou novos debates e uma nova visão sobre a matéria. O resultado começa a aparecer e vou utilizar um caso emblemático, com autorização da militante e parte autora em uma ação de retificação de registro civil, para discorrer sobre como funciona o processo e explanar sobre as decisões judiciais de que hoje dispomos.

luana24

Inicialmente, a pessoa trans que desejar retificar seu registro civil deve ingressar com uma ação judicial, apesar de muitos, inclusive eu, termos um entendimento de que retificação pode ser administrativa, e que, para tanto, o interessado deve procurar a Defensoria Pública ou um advogado particular. Apesar de sabermos que as pessoas trans têm o direito à sua identidade de gênero autopercebida, para formação de um processo judicial, precisamos juntar vários documentos, a saber: documentos pessoais (RG, Certidão de Nascimento e CPF), comprovante de residência, fotos e outros documentos que identifiquem a identidade de gênero autopercebida, documentos médicos que informem se houve processo de hormonização ou cirurgia de transgenitalização – não é obrigatório que a pessoa tenha passado por qualquer um desses processos –, certidões da Justiça Eleitoral, Justiça Federal e Estadual, antecedentes criminais e certidão dos cartórios de protestos de títulos e documentos, além do nome de 4 (quatro) testemunhas com endereço.

Após a entrega dos documentos ao Defensor Público ou advogado, inicia-se com a petição inicial um processo judicial no qual se requer a retificação de nome e sexo no registro civil de nascimento, com base na identidade de gênero autopercebida. Durante o processo judicial ocorrerá uma audiência com a presença do Defensor Público ou advogado, do Ministério Público e de um Juiz, momento em que a parte autora – pessoa trans – e suas testemunhas serão ouvidas.

 Luanna feliz com a conquista (Foto: Genilson Coutinho)

Luanna feliz com a conquista (Foto: Genilson Coutinho)

Posteriormente, o processo é direcionado ao Ministério Público, para que seja dado um parecer sobre o caso. Nesse momento, o (a) promotor (a) opinará sobre a concordância da retificação de registro ou não. Após essa fase, o processo retorna para o juiz que fará uma sentença, concedendo, ou não, a retificação do registro civil de nome e sexo. Insta ressaltar, que o juiz não está obrigado a concordar com o (a) promotor (a) de justiça.

Como exemplo de um processo de retificação de registro, trago a ação de Luanna, com a autorização desta, para promover informação a todos e todas que pretendem trilhar esse caminho. Luanna ingressou com uma ação de retificação de registro civil, em janeiro de 2015, pela Defensoria Pública, requerendo a retificação do nome que recebeu ao nascer para o nome pelo qual se compreende, Luanna, e a retificação do sexo na certidão de nascimento.

O juízo da Vara de Registro Público julgou procedente a ação da Defensoria Pública, com fundamentos no princípio da dignidade da pessoa humana, baseando sua decisão nos artigos da Lei de Registros Públicos que permitem a alteração do nome quando este pode ser considerado como vexatório e a possibilidade de retificação do nome para apelidos públicos e notórios. Assim, em termos simples, o nome social utilizado pela parte autora agora tornou-se seu nome de registro civil, mantendo o sobrenome de sua família.

A inexigibilidade da realização de cirurgia de transgenitalização para a alteração de nome e sexo é uma grande vitória jurídica e garante que a pessoa trans tenha seu registro retificado sem ser submetida a uma cirurgia de grande complexidade, considerando-se aspectos comportamentais e sociais para a definição da identidade de gênero. Sem dúvidas, a não exigência é um importante ganho, em termos jurídicos, dessa decisão.

Ainda temos que avançar muito. Precisamos, seguindo orientação mais recente, progredir com a ideia de DESPATOLOGIZAÇÃO DA TRANSEXUALIDADE e lutar pela retirada da transexualidade do rol das doenças identificáveis como transtornos mentais. Eu me filio à campanha Internacional STOP TRANS PATHOLOGIZATION-2012 pela despatologização das identidades trans, assim como fizeram outros colegas defensores, membros de movimentos sociais e profissionais da área de psicologia e saúde.

É igualmente necessário avançar no aspecto legislativo. Somente conseguiremos respeitar a dignidade das pessoas trans se aprovarmos uma lei de identidade de gênero que permita o autorreconhecimento, sem que haja interferência de atores externos para garantia dos direitos desses sujeitos.

O caminho é longo, mas o importante é que começamos e estamos avançando. Para Luanna e todas as demais pessoas trans que estão trilhando este caminho, meu respeito. Estamos todos juntos na luta pela igualdade de direitos e dignidade.

Por Dra. Bethânia Ferreira, Defensora Pública.