Uma conversa sobre Putta, o documentário
Por Adriane Primo
Foi nas primeiras décadas dos anos 2000, em um trabalho monográfico sobre a imagem da prostituta no cinema brasileiro, que a mineira Lílian de Alcântara passou a compenetrar o universo das mulheres prostitutas.
A inquietude quanto aos esteriótipos que acarretam essas mulheres fez com que ela dirigesse um documentário no ano passado com o intuito de quebrar os preconceitos que as cercam, resgatando algo que lhes foi tirado: A voz.
Junto com os parceiros Adriano Sousa (direção de som), Adolfo Delvalle (direção de entrevistadas e produção), Atilio Gazola (assistência de som), Atilon Lima (direção de fotografia), Camila Larroca (direção de arte e produção), Camila Vital (produção) e Luiz Todeschini (câmera), Lílian deu voz ativa a três prostitutas de Foz do Iguaçu no filme ‘Putta’.
Resultado do Trabalho de Conclusão de Curso de Audiovisual, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), o documentário de 28 minutos conta, por elas mesmas, uma parte da vida de Pantera, Diva Santos e Xayenne Prado.
A primeira, uma mulher cisgênero, que após ser estuprada e sofrer com o machismo do pai foi levada para um bordel aos 13 anos. E as duas últimas, mulheres transexuais que sofreram para assumir sua identidade de gênero e foram vítimas de cafetões.
Contando assim, as histórias soam tristes. E são. Pois refletem uma construção social equivocada acerca do que é ser mulher, trans e puta. Mas Lílian não explora as condições que as levaram até ali, nem mesmo a prostituição em si, essas são memórias trazidas pelas personagens.
Em Putta, ser puta é detalhe. O que você vai ver e ouvir são histórias de mulheres, que em vez de usar um computador como ferramenta de trabalho, usam o corpo. E é essa humanização que faz Putta ser necessário.
O filme já passou por festivais em São Paulo, Minas Gerais, Colombia, Portugal, Chile e Guatemala. E foi premiado na Romênia como melhor documentário do mês de maio de 2016, pelo Months Film Festival, evento de cinema on-line internacional que premia as melhores produções do ano.
No próximo dia 07 (quinta-feira) será veiculado no Arroios Film Festival, em Lisboa, e nos dia 08 e 17, no Rio Festival de Gênero e Sexualidade no Cinema, no Rio de Janeiro. Confira aqui as exibições do documentário
Nessa entrevista exclusiva para o Site Dois Terços , Lílian conta como foi o processo criativo do filme, ressaltando a necessidade do tema ser tratado de forma mais ampliada e livre de tabus.
Dois Terços – Lílian, você já tinha abordado o tema prostituição anteriormente em um trabalho de monografia já com outra perspectiva, pois buscava discutir como as profissionais do sexo eram retratadas no cinema. Por que você voltou ao tema?
Lílian – O pulo de um trabalho pro outro foi uma consequência inevitável. A questão para mim é que a imagem da mulher no audiovisual segue estereótipos e arquétipos muito estreitos, as ficções são conduzidas a designar dois tipos de mulheres: donas de casas/mães perfeitas e putas, sejam estas de profissão ou mulheres de “atitudes vulgares”. Por isso, na minha monografia decidi trabalhar o arquétipo da prostituta. Foi muito difícil fazer um recorte sobre isso, porque a intenção era mesmo discutir como o cinema alimenta o imaginário binário de “mulher” ou “puta”, inclusive como se puta nem fosse mulher. Ao longo da pesquisa acabei me deparando com um movimento muito organizado, questões muito mais profundas do que eu estava preparada para entender sobre o mundo da prostituição, e por isso terminei desviando um pouco da ideia inicial para fazer uma crítica ao cinema – como instituição – pois, mesmo quando se tenta ser feminista (ao falar de prostitutas), não se escutam as prostitutas, fala-se delas sem lhes dar voz, criam-se personagens ficcionais baseando-se em notícias de jornal, em histórias rasas, ou em imaginação mesmo. As prostitutas dos filmes nunca se organizam, seja para distribuir camisinha ou discutir o papel delas e seus direitos, para se defenderem (enquanto mulheres) e isso é muito grave, pois estamos avançando nas discussões sobre o papel da mulher no cinema, mas mantemos a mesma divisão entre mulheres e prostitutas. A partir desta crítica é que me senti motivada a fazer eu mesma um filme sobre prostitutas, não sobre prostituição, mas sobre mulheres, que ao invés de trabalharem com uma câmera ou um computador, trabalham com sexo. É preciso quebrar todos os tabus sobre mulheres prostitutas, antes de falarmos da prostituição como um sistema que inclui clientes, cafetões, e por onde permeiam crimes contra a mulher.
DT – Cada componente é de uma região diferente do Brasil e de outros países também. Essa diversidade cultural deu volume referencial para a abordagem do tema?
Lílian – Essa diversidade é a base mais forte da Unila, viver cotidianamente em um ambiente com pessoas de tantas regiões da América Latina, discutindo dentro e fora da sala de aula desde nossas variadas culturas, é parte fundamental da nossa formação, as fronteiras são rompidas e nos latinoamericalizamos. Isso, é claro, traz muita riqueza para o nosso olhar sobre o mundo. Quando fomos fazer o filme toda nossa pesquisa foi direcionada a vários países da América Latina, nossas referências estéticas vêm de distintos países, mas principalmente a forma de lidar com o outro, para quem não convive há tantos anos com “os seus” é muito diferente. Isso é um avanço quando vamos falar de um tema tabu, porque a diferenciação de nós e do outro, ou da equipe e das prostitutas, no caso, é algo que jamais faríamos, isso é o que gera um diálogo tão honesto e tanta confidência no set de filmagens.
DT – A percepção de vocês acerca do assunto foram quebradas – ou reconstruídas – ao longo do processo?
Lílian – O controle que temos sobre o discurso de nossas entrevistadas durante a filmagem e a edição só pode ser guiado pela ideologia, o material bruto tinha 6h de entrevistas, além das imagens de cobertura. Poderíamos ter feito diferentes filmes. Esta é a questão do documentário, primeiro, que nunca encontraremos com o que prevemos, pensávamos em falar sobre os cotidianos dessas mulheres e terminamos fazendo suas biografias, porque é o que elas quiseram nos contar, essa é a parte que não temos controle, não sabíamos quem entrevistaríamos, que tipo de pessoas esperar, e por mais que levássemos perguntas prontas, não é possível controlar o que elas realmente querem dizer. Já no momento da filmagem, nos sentimos como esculpidores de suas imagens, porque deixar um tempo entre um corte e outro, ou cortar tudo muito rápido, muda o discurso de quem diz e muda a percepção de quem vê. Se num primeiro momento nós evitamos discutir qual era nossa ideologia a respeito da prostituição, das prostitutas e das três mulheres, na edição ficou inevitável, era necessário discutir se coloríamos legendas para gírias próprias do universo, se deixaríamos seguir discursos que podem comprometer as meninas e se aproximá-las uma das outras, ou distanciá-las, a partir de suas opiniões sobre assuntos semelhantes. Antes do filme, a maioria da equipe não conhecia a história de uma prostituta, não tão a fundo, e é claro, ouví-las e abraçá-las faz com que tudo aquilo que me propus a pensar deste minha monografia se tornasse algo sólido. Não é uma questão da imagem da mulher, é uma vida, o cotidiano de alguém, a história inteira, não dá pra simplesmente pensar o que achamos ou não achamos da prostituição, ela é real, e precisa ser retratada e entendida, antes de discutida.
DT – O nome “Putta” faz referência a mitologia romana – o que vocês fizeram questão de deixar claro no doc. Quais os reais critérios para escolha do nome, visto que esta ainda é uma palavra de conotação pejorativa?
Lílian – Dar título para projetos é sempre um desafio, a primeira coisa que alguém vai saber do filme é o nome, então essa escolha era muito importante, buscávamos um nome sucinto, que revelasse o sentido do filme de cara. No processo de pesquisa discutimos muito desde as perspectivas da Gabriela Leite, prostituta, ativista, que fundou a organização nacional de prostitutas no Brasil, um resumo válido da obra dela é que ela não quer mudar nada na prostituição, ela não quer falar de trabalhadoras sexuais, o nome é “puta”, e deve ser usado. Não é para tirar ninguém da prostituição, com pena e vitimismo, é criar um ambiente de trabalho possível e honesto para quem quiser trabalhar como prostituta, ou precisar, porque claro, trabalho é algo que a gente precisa, não é hobby e lazer. Então pesquisamos de onde vinha a palavra puta e descobrimos essa história incrível da mitologia, e que putta, vem de rapariga, quenga, piriguete… são palavras que podem designar “moça, menina, garota” e em outro lugar significa prostituta, ou seja, as palavras para prostituta são as mesmas que para mulher, isso une as mulheres em um só grupo e quebra a divisão de “mulher” e “prostituta” que desde o início estávamos tentando explicar, além do mais, quando inserimos o segundo t: Putta, gera uma intriga “porque dois t”? Então o espectador já vai para o filme sabendo que é sobre putas, mas querendo entender o segundo t! Parece que funcionou.
DT – Vocês trazem uma mulher, uma travesti e uma transexual para a frente da câmera. Com isso vocês quiseram ampliar o debate?
Lílian – Na verdade, a gente ia trabalhar só com mulheres cisgênero, poque o tema já era muito amplo, incluir as discussões de gênero, para um curta-metragem – de primeira viagem ainda – era muito pretensioso, mas as personagens vieram, nós não tivemos escolha. Buscamos muitas mulheres, mas todas elas desapareciam de alguma forma, decidiam não participar, foi quando o Adolfo (encarregado pelo elenco) nos apresentou a Diva, nós não tivemos dúvidas de que ela deveria estar no filme e tudo que tínhamos planejado a respeito disso deixamos para trás. Em seguida apareceu Xayenne, que já era uma amiga, frequentadora dos mesmos espaços que os estudantes, e por último, é que encontramos uma mulher cis. Por pouco o documentário não foi só com mulheres trans! E depois que começamos as entrevistas não pensamos mais nisso, estávamos tratando de três prostitutas, tanto que a relação com o corpo, ou outras questões de gênero não foram aprofundadas.
DT – Quando vocês entenderam que esse trabalho acadêmico poderia participar de festivais?
Lílian – Tendo o filme pronto era necessário jogar ele pro mundo, se ele ficasse só na internet não teria diálogo, debate, projeção coletiva. E este é um filme feito para incitar debate, precisamos exibi-lo em festivais, mostras, cineclubes, saraus, onde for, mas que tenha gente. Nós não conhecíamos ainda os circuitos de festivais, não sabíamos o que esperar, mas quando a gente tá formando, também precisa de currículo, então foi a primeira forma de distribuição que tentamos. E deu super certo! O filme tá sendo bem aceito, exibido em vários lugares que a gente nem podia imaginar.
DT – Apesar de circustâncias perversas que levaram as personagens a se tornarem profissionais do sexo, é visível que elas não se colocam em lugar de vítima e nem a montagem sugere essa ideia. Na sua visão, o tema prostituição ainda é tratado de forma estigmatizada no Brasil?
Lílian – Isso é bastante sério, uma ala radical do movimento feminista está brigando neste mesmo momento contra o projeto de lei Gabriela Leite, porque entende que a prostituição é parte da cultura machista, e essa discussão é longuíssima, mas não deveria dividir as mulheres que lutam pela liberdade feminina. A Gabriela Leite tem uma frase que eu acho que resume isso tudo: “Eu penso que se você considera uma pessoa vítima é porque já estabeleceu uma relação de dominação com ela. Nesse particular, prefiro os conservadores. Eles são mais claros, menos ambíguos”.
Fique sabendo
Mesmo não sendo crime no Brasil e ser uma atividade reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a prostituição não é uma profissão regulamentada. Ou seja, as mulheres e homens que atuam como profissionais do sexo têm seus direitos trabalhistas negados e ficam em maior situação vulnerabilidade.
Essa regulamentação era a grande bandeira de luta de Gabriela Leite (1951-2013), prostituta por opção, que tornou-se um das principais ativistas sobre os direitos das prostitutas no país. Fundou a ONG Davida, criou a grife Daspu e escreveu o livro ‘Mãe, avó e puta’, onde contou sua tragetória.
Mesmo com toda militância, Gabriela não viveu suficiente para ver os direitos das prostitutas legislado no país. E apesar de alguns grupos feministas abominar a atividade, há quem a defenda. Não como forma de incentivar, mas para dar a essas mulheres e homens o direito a boas condições de trabalho, previnir a violação do direito da criança e do adolescente, acabar com o tráfico de pessoas, entre outras séries de violações. Atualmente, o deputado Jean Wiyllys (PSOL) tenta aprovar o projeto de lei que leva o nome da ativista.
Adriane Primo
Jornalista e ccolaboradora especial Dois Terços