Uma conversa com doutora Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora

Genilson Coutinho,
22/08/2012 | 14h08


Regina Navarro Lins pesquisou durante cinco anos para O Livro do Amor, que é seu 11º livro a respeito de relacionamentos amorosos. Começa na Pré-história e sigo por todos os períodos da História do Ocidente: Grécia, Roma, Antiguidade Tardia, Idade Média, Renascença, Iluminismo, Romantismo, Século XX, Atualidade. São dois volumes: I: Da Pré-História à Renascença; II: Do Iluminismo à Atualidade.

“Em cada período conto casos da época, como as pessoas viviam e pensavam, enfim, qual era a mentalidade que havia. E mostro como o que se viveu no passado nos afeta hoje. O amor é uma construção social e se apresenta de formas diferentes. A minha intenção é que o leitor se sinta vivendo cada época e ao terminar o livro não tenha dúvidas de que podemos escolher nossa forma de viver., declara a autora.

Quando surgiu a ideia de escrever O Livro do Amor, esse inventário da construção cultural do amor e da sexualidade através da História?
Na década de 90, enquanto eu escrevia A Cama na Varanda, percebi como é fundamental conhecermos a maneira de pensar e viver dos nossos antepassados e o que de outras épocas nos afeta hoje. Só entendendo isso podemos reformular o nosso presente e tentar viver de forma mais satisfatória.

Ao longo dos cinco anos de investigação para esse livro e dos mais de 200 títulos que consultou para a pesquisa, o que mais lhe surpreendeu?
A violência que a mulher sofreu desde que o sistema patriarcal se instalou, há cinco mil anos, e o absurdo que foi a repressão sexual nos últimos dois mil anos, desde o cristianismo.

Você diz que as relações amorosas e sexuais estão entre as principais causas do sofrimento humano. Por que duas supostas fontes de felicidade e prazer acabam se convertendo tão frequentemente em dor e frustração?

Concordo com Reich quando ele afirma que a interiorização da repressão sexual enfraquece o ‘Eu’ porque a pessoa, tendo que constantemente investir energia para impedir a expressão dos seus desejos sexuais, priva-se de parte de suas potencialidades. Isso é fácil de constatar quando observamos que a atividade sexual que se exerce na nossa cultura é de tão baixa qualidade. Na maioria das vezes ela é praticada como uma ação mecânica, com o único objetivo de atingir o orgasmo o mais rápido possível. Um bom exemplo disso é o fato de que 75% dos homens ejaculam menos de dois minutos depois de introduzir o pênis na vagina. As mulheres, por sua vez, condicionadas a corresponder às expectativas dos homens, e temendo buscar o seu prazer no sexo, ficam paralisadas e se frustram. O resultado, para ambos, é um desempenho bastante ansioso, podendo levar a um bloqueio emocional e a vários tipos de disfunção, como impotência, ejaculação precoce, ausência de desejo e de orgasmo, sem falar nos casos mais graves de enfermidades psíquicas.

Um aspecto que chama a atenção em seu livro é que a normatização cultural sistemática das noções sobre o amor e a sexualidade através dos séculos parece ter tratado de perpetuar sua divisão. A que você atribui a necessidade de tal cisão dentro das esferas de poder responsáveis por essas normas? Por que sempre foi vedada ao homem a plenitude amorosa e sexual?

O sexo sempre teve destaque na história da humanidade. Dependendo da época e do lugar, foi glorificado como símbolo de fertilidade e riqueza, ou condenado como pecado. A condenação do sexo surgiu com o patriarcado, há cinco mil anos. No início, restringia-se às mulheres, para dar ao homem a certeza da paternidade, mas com o cristianismo o padrão moral tornou-se, em tese, o mesmo para homens e mulheres, embora na prática houvesse maior condescendência para com o homem. Concordo com o psicoterapeuta e escritor José Ângelo Gaiarsa quando diz que uma explicação possível para a ausência de plenitude amorosa e sexual reside no fato de que, quanto mais o indivíduo vai ampliando, aprofundando e diversificando sua vida sexual — e isso significa transgredir —, mais coragem ganha para fazer outras coisas, questionar outros valores. Começa a viver com maior vontade e decisão. Pode começar a se tornar perigoso. Não deve ser à toa nem por acaso que as forças repressoras de todas as épocas se voltaram tão sistemática e precisamente contra a sexualidade humana.

O casamento por amor é um fenômeno do século 20, algo que, segundo seu livro, passou a ser desejado sobretudo a partir dos anos 1940. No entanto, você acredita que esse ideário tem seus dias contados. Por quê?

O amor romântico, pelo qual a maioria de homens e mulheres do Ocidente tanto anseiam, se caracteriza pela idealização do outro e traz a ideia de que você tem que encontrar alguém que te complete, sua alma gêmea. Esse tipo de amor prega a fusão total entre os amantes e a ideia de que os dois se transformarão num só. Agora, a busca da individualidade caracteriza a época em que vivemos; nunca homens e mulheres se aventuraram com tanta coragem em busca de novas descobertas, só que, desta vez, para dentro de si mesmos. Cada um quer saber quais são suas possibilidades, desenvolver seu potencial. O amor romântico propõe o oposto disso, na medida em que prega a fusão de duas pessoas. Ele então começa a deixar de ser sedutor. Um amor baseado na amizade e no companheirismo está surgindo. Haverá menos idealização e você vai poder perceber melhor o outro. O amor romântico está saindo de cena e levando com ele a sua principal característica: a exigência de exclusividade. Sem a ideia de encontrar alguém que te complete, abre-se um espaço para outros tipos de relacionamento, com a possibilidade de se amar mais de uma pessoa de cada vez. O modelo de casamento que conhecemos dá sinais de que será radicalmente modificado. Dentro de algumas décadas, um parceiro único pode se tornar coisa do passado.
Embora a História seja construída a partir de ciclos de repetições, a imagem da mulher executiva, atuante, solteira e independente é historicamente inédita – a ela sempre coube papeis, no mínimo, subalternos. A partir de sua experiência é possível acreditar que essa nova personagem já foi totalmente assimilada? Se não, quais são os principais obstáculos para sua aceitação?

Os papéis masculinos e femininos sempre foram muito bem definidos. O homem para ser considerado masculino tinha que mostrar força, sucesso, poder. Da mulher feminina esperava-se que fosse meiga, gentil, compreensiva, deixasse claro que não gostava muito de sexo e se esforçasse, acima de tudo, para corresponder ao que o homem esperava dela. A partir da década de 60 as mulheres começaram a mudar. Exigiram igualdade de direitos e liberdade sexual. A fronteira entre os papéis do homem e da mulher estão, desde essa época, se dissolvendo. E isso é ótimo. Acredito ser um pré-requisito para uma sociedade de parceria entre homens e mulheres. O principal obstáculo é a mentalidade patriarcal, da qual muitos ainda não conseguiram se libertar. Entretanto, o homem machista é cada vez menos aceito e desejado.

Você diz em seu livro que “O mundo mudou muito mais da década de 1960 para cá do que do Período Paleolítico até então”. No entanto, O Livro do Amor também nos mostra o quanto convivemos ainda hoje com heranças comportamentais muito antigas (muitas delas primitivas e medievais). Até quando você acredita que haverá essa coexistência? É possível que homens e mulheres consigam um dia se libertar de construções engendradas por tanto tempo?

Não tenho a menor dúvida de que sim. Nem precisamos ir tão longe na História para ver como as mentalidades mudam. Vamos fazer um curta viagem até os anos 50 ou, mesmo, os 60. Era impensável uma moça deixar de ser virgem antes do casamento. Agora, isso não é nem discutido; muitos namorados dormem juntos à vista dos próprios pais. Naquela época se alguém dissesse: “Daqui a algum tempo a separação de um casal se tornará algo comum.” Iam dizer que a pessoa não tinha noção do absurdo que estava dizendo. A separação era uma tragédia familiar. A mulher era considerada uma desavergonhada, os filhos eram discriminados e, em muitos casos, não eram aceitos em escolas tradicionais. O comportamento amoroso e sexual evolui após as vanguardas apontarem tendências e arriscarem novos caminhos. Há cem anos os casais mantinham relações sexuais com luz apagada e sob lençóis. Hoje práticas, que só eram usuais nos bordéis, fazem parte da intimidade das famílias mais respeitadas. Vivemos um processo de profunda mudança das mentalidades, mas ele é lento e gradual e só começou há 40 anos.

Na Idade Média se propagou a renúncia, a condenação do corpo em favor do “espírito”. Ecos dessa condenação puderam ser ouvidos ao longo de séculos. Como você vê o culto ao corpo que vivemos hoje na cultural ocidental?

O culto ao corpo e o sacrifício que, principalmente, as mulheres fazem em função dele não é novidade. No século XIX, o uso do espartilho dificultava a respiração, fazia mal à coluna, deformava os órgãos internos, tornava difícil se sentar ou subir escadas. Algumas mulheres ajustavam-no tanto para que a cintura não passasse de 40 cm, que acabavam com feridas debaixo dos braços e ao redor da cintura. Isso sem falar nas que morreram por terem o fígado perfurado pelas costelas. O historiador da cultura Morris Berman afirma que os ocidentais perderam o próprio corpo. Estando fora de contato com a verdadeira realidade somática, há uma tentativa de afirmação através de satisfações como sucesso, fama, auto-imagem, dinheiro etc. E mesmo fora do corpo observa-se uma preocupação paradoxal com o corpo e sua aparência. Tenta-se melhorá-lo com maquiagem, roupas, cirurgia plástica, alimentos naturais, vitaminas e exercícios.

Você fala do “véu da repressão sexual” que atuou fortemente de 1800 até os anos 1960. A pílula, e a dissociação entre procriação e prazer que proporcionou, foi a grande responsável pela queda gradativa desse véu?

Após a Segunda Guerra, com a destruição de Hiroxima e Nagasaki, a ameaça da bomba atômica paira na cabeça dos jovens, que começam a questionar os valores de seus pais. Nos anos 50, surgem a Geração Beat, que faz sua própria revolução cultural através da literatura, e o rock and roll, que libera a juventude do conformismo. Mas a mudança radical de mentalidade só foi possível devido a pílula. Com o fim da maternidade indesejada, o movimento feminista ganha força. A pílula também favoreceu o Movimento Gay. O controle da procriação aproximou a prática hétero e homo. Todos podem fazer sexo pelo prazer. Sem a pílula não teria havido a Revolução Sexual.

Quais os relatos e queixas mais frequentes que você recebe, tanto em consultório quanto por meio das redes sociais, sobre a vida amorosa e sexual das pessoas? Para você, qual o principal vilão da irrealização amorosa e sexual nos nossos dias?

Houve grande evolução a partir da década de 70, mas homens e mulheres ainda sofrem demais com seus medos, culpas e frustrações.
Pouca gente tem coragem de tentar novos caminhos. Apesar das frustrações quase todos recorrem ao que já é conhecido. O desconhecido assusta, dá medo, gera insegurança. No que diz respeito à vida a dois isso quase sempre acontece. O principal vilão que impede as pessoas de viverem com mais satisfação e menos culpa me parece ser a exigência de exclusividade amorosa e sexual nas relações estáveis. Será que não está na hora de começarmos a questionar se fidelidade tem mesmo a ver com sexualidade?

A exigência da exclusividade amorosa e, consequentemente, sexual acabará um dia?

Acredito que sim. Pensa-se no amor como se ele nunca mudasse. O amor é uma construção social, e em cada época da História ele se apresentou de uma forma. O amor romântico saindo de cena levará com ele a sua principal característica: a exigência de exclusividade. É bem possível que daqui a algumas décadas menos pessoas desejem se fechar numa relação a dois e mais gente opte por relações com parceiros variados. Mas isso não significa necessariamente que deixarão de estabelecer vínculos profundos com as pessoas amadas.

O Livro do Amor – Vol. 2
Disponível na livraria Saraiva Shopping Iguatemi
Preço: R$ 23,90