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Solve et coagula!

Armando Januário,
17/02/2021 | 13h02
(Foto: Reprodução)

No Dia Nacional da Visibilidade Trans, 29 de janeiro, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), juntamente com o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), publicou o Dossiê dos Assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. Nele, há um conjunto de informações relevantes: a liderança mundial do Brasil em assassinatos contra a população trans e travesti, e a atuação de 90% desse grupo na profissão do sexo. Ante essa realidade, trazida por uma entidade não governamental brasileira representativa da luta das pessoas trans e travestis à dignidade, conforme previsto pelo Artigo 1º, Inciso III, da Constituição Federal, perguntamos quais as profissões exercidas pelos 10% restantes de um grupo social historicamente perseguido e violentamente privado de direitos básicos.

Em Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, a educadora Guacira Lopes Louro discute o termo estranhar em íntima ligação com a admiração ou surpresa ante algo considerado supostamente contrário à natureza. Segundo ela, o termo queer representa um xingamento em língua inglesa contra pessoas LGBT, apontando para essa sigla enquanto constituída por pessoas abjetas, as quais não podem ser sequer toleradas pela sociedade considerada normal. Contudo, a partir do final da década de 1990, queer se tornaria um movimento e também um importante campo de estudos, os quais assumem uma forma de pensamento em franca oposição às normas compulsoriamente cisgêneras* e heterossexuais. Queer é o excêntrico, O estranho, texto publicado por Freud (1856-1939) em 1919, onde o fundador da psicanálise apontou para o sentimento de estranheza como ligado ao retorno de formas primitivas de pensamento, que causam angústia, frente a algo que não se consegue determinar.

Nesse cenário, o corpo travesti e transexual segue indeterminado para a sociedade brasileira, historicamente binária: homem-masculino, mulher-feminina. Esse pensamento fundamenta discursos autoritários e anticientíficos, resultando no genocídio da população trans e travesti, não apenas em sua eliminação física, mas, também inativando qualquer expressão da sua existência.

Parece ter sido essse o ocorrido com a digital influencer, Romagaga, pessoa trans que perdeu 1,6 milhões de seguidores em uma rede social. Em suas palavras, “Simplesmente sem explicação, sem nada.” Romagaga se diz deprimida e preocupada, uma vez que, através desse trabalho informal e sem nenhuma estabilidade, ela ajuda sua mãe, Dona Raimunda. Longe de acusar a rede social envolvida, surgem algumas perguntas: por que, sem nenhuma explicação, o perfil de Romagaga foi desativado? Se ela fosse uma pessoa cis, isso teria acontecido? Nesse ínterim, talvez tenhamos encontrado a resposta para a questão inicial: os 10% de pessoas trans e travestis que não se prostituem atuam em funções sem garantias trabalhistas e bastante vulneráveis.

Com existências canceladas, pessoas trans e travestis seguem vivendo estranhamente no interior da sociedade cisgênera. Na verdade, elas não deixarão de existir, pelo contrário, seus corpos e vozes resistem a cada gesto de transfobia. Para cada eliminação, percebemos que esse grupo social mais se empodera e segue inventando novos modos de viver. Na prática, elas seguem por um importante princípio da Alquimia: solve et coagula, destruição e (re)criação…

*O termo cisgênero ou cis se refere a pessoas que se identificam com o gênero socialmente atribuído.

Sobre o autor:

Mestrando em Psicologia pela UFBA. Psicólogo graduado pela UNEB e Graduado em Letras com Inglês pela mesma instituição. Pós-graduado em Psicanálise; em Gênero e Sexualidade; e em Literatura. Autor do livro Por que a norma? Identidades Trans, Política e Psicanálise. Instagram: @januario.psicologo.