Relato de Bordo: dos centavos à cura!

Genilson Coutinho,
19/06/2013 | 11h06

Hoje, 18 de junho de 2013, é meu segundo dia na cidade de Barcelona, capital da Catalunha, região da Espanha. Ao acessar minha página no Facebook, percebo uma movimentação de brasileiros residentes aqui se organizando para a realização de uma manifestação contra a violação de uma série de direitos civis e humanos ocorridos recentemente no país. Como ativista dos direitos humanos que sou, mesmo diante de minha terra natal e em férias trabalhistas, não posso deixar de me unir a todos aqueles que conscientemente sabem do nosso papel na mudança social e política que queremos ver em nosso Brasil.

Palavras são, de fato, insuficiente para expressar a emoção que eu tive de estar junto de cada um daqueles brasileiros residentes, num ato importante e numa praça história que pisaram movimentos que admiro e pessoas incríveis como o Eduardo Galeano, num território distante de nossa pátria-mãe e ainda assim, tão perto dela. Percebi o quanto nós não estamos unidos em apenas uma causa e sim em várias, sobretudo, as que envolvem a defesa efetiva dos direitos humanos no Brasil.

E o que achei mais importante: sabíamos disso! Sabíamos que o movimento é contínuo, é cotidiano. Despertamos hoje um sentimento de construção de pensamento crítico incrível, esse sentimento é movido por uma necessidade de empoderamento social que nenhuma estrutura de poder cristalizado pode tirar de nós!

Retorno pra casa. De rosto pintado, bandeira no peito e um sentimento de contribuição à vida social de meu país. No caminho, só imaginava como seria o nosso ato em minha querida terra sertaneja, Vitória da Conquista. Vontade de estar lá. Junto com meu povo, a quem eu decidi, cotidianamente, depositar todas as forças para a construção de uma cidade que ultrapasse qualquer barreira do preconceito, da ignorância, da lentidão e da subserviência.

 

Chego a minha hospedagem e como costume, acesso o Facebook para relatar minhas emoções neste dia. E, numa primeira postagem, percebo que posso estar doente. Não por ainda não me acostumar com a temperatura de Barcelona. Não por me desorganizar com o fuso horário daqui. Doente, na visão de alguns, por ter uma vida cuja sexualidade não se adequa às normas padrões da dita heteronormatividade.

Sim. Isso mesmo. Meu país, o qual me fez sair às ruas, pintar o rosto, lutar por melhorias, me presenteia com a aprovação na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM/CD) do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 234/2011, do deputado João Campos (PSDB-GO), que visa eliminar trechos da Resolução do CFP nº 01/99.

Para quem não tem conhecimento, informo: em fevereiro de 1999 o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou uma nova regulamentação para determinar padrões éticos e protocolares para os profissionais da Psicologia, tratou-se da Resolução CFP 01/99. Através desta tornou-se obrigatório que os psicólogos e as psicólogas do Brasil se alinhassem aos parâmetros da OMS (Organização Mundial da Saúde) e ao CID – 10 (Código Internacional de Doenças – versão 10) no que se refere ao entendimento da homossexualidade, ou seja, não seriam mais aceitas as práticas e discursos desses profissionais que a chancelassem como doença, desvio ou perversão, bem como desautoriza o tratamento e a proposta de cura da atração entre pessoas do mesmo sexo.

A Resolução CFP 01/99 emergiu de um contexto em que se destacava a presença do vínculo religião e prática da psicologia numa associação que patologizava a homossexualidade e propunha seu tratamento, atendendo assim as demandas religiosas através e com a ajuda da ciência psicológica. E esperava-se que, após sua publicação, os discursos e as práticas que embasavam tais ações não fossem oficialmente aceitas e por isso, menos ou não mais executadas, pelos profissionais da Psicologia que as realizavam.

E o que temos hoje?

Atualmente, as ligações entre Psicologia, religião e sexualidade revelam essa face que se apresenta explicitamente oposta aos pressupostos da Resolução CFP 01/99 e aos paradigmas fundamentais da prática psicológica calcados nos princípios éticos embasados nos Direitos Humanos. Agora, 14 anos depois, um tal pastor quer retroceder.

Há 12 anos, o Congresso discute a aprovação de projetos que buscam punir a discriminação por orientação sexual, sendo sempre freados, substituídos, mas jamais avançando, conforme se observa com o Projeto 5003/2001, substituído pela PLC 122/06 e recentemente alterado para Projeto de Lei Alexandre Ivo. Enquanto isso projetos esdrúxulos, como os popularmente denominados “Projeto da criminalização da heterofobia” e “Projeto da Cura Gay” tem prioridade na pauta da Comissão de Direitos Humanos e Minorias.

Até quando iremos ter pessoas, frente a estruturas de decisão, cujas atitudes e discursos vão de contra a emancipação e a garantia de direitos, mas que nessa trama da religião com a sexualidade aliadas às teorias psicológicas tem contribuído muito mais à prevalência do sofrimento, do sentimento de rejeição, do preconceito, enfim da homofobia?

Nada há de mais cruel do que condenar alguém à invisibilidade, e essa tem sido a postura do legislador para com lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Diante da inexistência de uma legislação que reconheça seus direitos e criminalize atos homofóbicos sofridos, esta parcela da sociedade tem sido refém de todo tipo de violência e abusos, sendo o Brasil o país com o maior registro de crimes homofóbicos.

O sistema legal precisa contemplar todos os segmentos sociais, afinal constitui dever fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Somente a aprovação de um sistema legal que retire a comunidade LGBT da margem do sistema jurídico garantirá o livre exercício da diversidade sexual e permitirá que o Brasil se proponha a ser verdadeiramente um Estado Democrático de Direito.

E, enquanto isso, devemos continuar nas ruas. A protestar, a erguer nossa voz. Nos espaços sociais, a compartilhar todas as possibilidades de manifestos, agendas a favor da livre expressão sexual do ser humano. Se, em 1990, com nossa força e organização retiramos a homossexualidade da lista internacional de doença; hoje, quase 24anos depois, iremos lutar para que essa (lou)cura (in)feliciana seja apenas mais um motivo para insistirmos diariamente que a homofobia, essa sim, tem cura. E o caminho já sabemos: educação e criminalização!

Por

Danillo Bittencourt

Jornalista por formação, ativista de direitos humanos e, atualmente, é Assessor da Diversidade Sexual da Prefeitura de Vitória da Conquista.