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Quem come quem?

Genilson Coutinho,
30/07/2014 | 11h07

quem

Uma das primeiras coisas que tive que responder ao sair do armário foi se era ativo ou passivo. Na época, achei bastante natural que uma amiga – heterossexual e tendo seu primeiro contato com um gay assumido – me perguntasse isso. Treze anos depois, em 2014, o que me espanta é que nós, gays, ainda estejamos preocupados em nos definir dessa forma. Pior, definir os outros também! Será que ainda somos assombrados pelo rótulo de “quem é o homem e quem é a mulher”?

As fotos que ilustram esse post são do casal Michael Sam e Vito Cammisano. Sam ficou famoso recentemente por ter sido o primeiro jogador de futebol americano abertamente gay a ser escolhido para a liga profissional. Já Cammisano, ganhou notoriedade por ter sido beijado em rede nacional pelo namorado, em comemoração ao fato. Não é incrível que a discriminação acabe por nos dar mais destaque? É um típico caso de “sua inveja é o combustível do meu sucesso” ou “com as pedras que me atirares construirei meu castelo” ou outro tipo qualquer de adesivo de caminhão. Entretanto, não é disso que quero falar.

Com a notoriedade, vieram as fotos e os comentários sobre os moços. Em veículos gays é consenso que eles são uns fofos, mas outra coisa muito comum é a certeza de que Michael “está comendo” esse rapaz. Porquê? Porque é maior? Porque é “um negão”? Seria porque Vito é uma “bichinha” e seria broxante imaginar que um homem como Sam se submetesse a dar para ele? De repente ele é tão alto e forte, além de ser um atleta, que mesmo tendo se assumido gay não poderia piorar tudo sendo passivo! Não é mais provável que, sendo negro, ele tenha um pau infinitamente maior do que o do namorado, que por sua vez não resistiria a tamanho poder? Não é isso?

Ai, ai… Não dá pra saber. E não interessa. É perfeitamente possível que Vito tenha três vezes mais centímetros de pênis que o namorado e que seja exclusivamente ativo, ou que seja igualmente dotado, mas prefira ser passivo, assim como é possível que Sam seja o passivo e até que seu “pau preto” seja do tamanho de um dedo e ainda assim ele seja o ativo. Talvez seja mais provável que os dois se considerem versáteis, mas também é possível que nem curtam penetração. Realmente, nada disso importa.

Essa ideia opressora de dominação pelo falo, de uma disputa de poder que só dá status ao macho, é uma das coisas mais infantis da fragilíssima construção da masculinidade. Sexo é bom sem amarras, sem esse tipo de neurose. Não faz o menor sentido que alguém se sinta validado por ter um pau maior ou mais duro ou ser aquele que está metendo. É ainda mais inaceitável que esse tipo de percepção sirva para diminuir quem é passivo. A masculinidade é um construto cultural baseado na dominação para manter um sistema de poder que vitimiza até os próprios homens. Está longe de ser essa maravilha e ninguém vale menos por “atentar” contra ela, ainda mais ao se utilizar do próprio corpo.

Ativos e passivos se complementam. Uma prática não existe sem a outra. Tentar decifrar o que alguém prefere por sua aparência ou seu comportamento é uma bobagem. Qualquer bonita mais rodada sabe que tá cheio de boy Kinder Ovo surpreendendo por aí! Quem nunca chorou ao ver o bofão de dois metros já cair na cama virando de bruços ou se surpreendeu com o emo dominador?

Brincar com esses “papéis” ou fantasiar com o jogo de poder é uma coisa. No sexo, vale tudo que for consensual e prazeroso. Mas insistir na hierarquia entre “macho” e “fêmea” e reproduzir esses conceitos para qualificar ou desqualificar nossos iguais é adicionar homofobia ao que já era burrice! É uma “viadagem” do pior sentido! Sem contar que, para “morder” e “comer” alguma coisa é preciso usar a boca ou algo similar, então: quem come quem? Vamos transar, já que a vida é muito curta para perdermos tempo com essas disputas de “quem mija mais longe” ou “quem goza mais”. A gente cresceu, não foi?

*Texto publicado originalmente no blog ‘Os Entendidos’.