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Projeto Teatro Épico na Bahia estreia ‘Luzes da Boêmia’

Genilson Coutinho,
09/04/2017 | 11h04
luzesdaboemia

Foto: Michelle Vivas

Entre 6 e 16 de abril, o público soteropolitano terá a chance de conhecer, no palco, um dos textos mais emblemáticos da dramaturgia em língua espanhola. “Luzes da Boemia”, do controverso escritor galego Ramón del Valle-Inclán (1866-1936), ganha versão encenada pelo diretor Santiago Roldós (Equador) a partir de residência artística com a Universidade Livre do Teatro Vila Velha. O espetáculo inaugura o projeto “Teatro Épico na Bahia”, realizado pelo TVV e com apoio financeiro do Fundo de Cultura da Bahia (Secretarias da Cultura e da Fazenda), através do edital Setorial de Teatro 2016, e permanece em cartaz de quinta a sábado, às 20h, e aos domingos, 19h, em curta temporada.

A obra narra as últimas horas de vida de Max Estrella, poeta cego e decadente, em uma peregrinação pelas ruas de uma Madri obscura e marginalizada, sempre acompanhado pelo personagem Dom Latino de Hispális, o que faz lembrar o clássico “Dom Quixote”. Escrita em 1920, publicada em capítulos, na revista “España”, talvez tenha na acidez da sua crítica à sociedade espanhola o motivo pelo qual foi encenada pela primeira vez apenas na década de 1960, quando Valle-Inclán já não era vivo.

“Ramón del Valle-Inclán é o autor espanhol mais latinoamericano, mais que Frederico García Lorca, por exemplo. Ele viveu muito tempo no México, viveu em Cuba, e lhe interessava muito a literatura e a realidade latinoamericanas. Essa obra fala da decadência de uma nação, fala da Espanha como potência e do lugar da cultura nessa decadência, da relação da arte com o poder”, conta o diretor Santiago Roldós.

Segundo o superintendente de Promoção Cultural da SecultBA, Alexandre Simões, os Editais Setoriais têm o papel de apoiar artistas e iniciativas culturais que venham à agregar valor à cultura baiana. No caso do “Teatro Épico”, dá a oportunidade de o público acessar uma montagem com parceria internacional. “O projeto garante uma vivência com outras experiências, tanto para público quanto atores. Além disso, garante projeção e renovação do nosso teatro, permitindo que essa dinâmica que envolve dezenas de agentes culturais tenha continuidade”. O TVV também é apoiado pelo Programa de Ações Continuadas de Instituições Culturais, com recursos do Fundo de Cultura da Bahia.

No Brasil, “Luzes da Boemia” foi montada poucas vezes. Há registro das versões do diretor William Pereira, em 1996, em São Paulo, e de Aderbal Freire Filho, em 2000, no Rio de Janeiro. Na atual versão criada entre Bahia e Equador, o elenco é composto de atores e atrizes já formados pela universidade LIVRE do teatro vila velha, bem como atuais integrantes do programa de formação. O primeiro encontro entre o grupo e Santiago Roldós aconteceu exatamente um ano atrás, em março de 2016, no Tetro Vila Velha, quando a proposta era criar uma dramaturgia própria, a partir de exercícios de leitura, escrita e improvisação. Já de volta ao Equador, o encenador mudou de ideia e propôs ao grupo o texto de Valle-Inclán.

“Me pareceu que, neste texto, pelo qual estou apaixonado há muitos anos, havia coincidências nada óbvias, mas profundas, com a estrutura dramatúrgica que buscávamos construir com a universidade LIVRE. Estava aí a pergunta sobre o valor do artista e sua atividade poética em tensão permanente com a decadência e corrupção generalizada de uma nação dividida e assolada pela inequidade. Qualquer semelhança com a nossa realidade não é mera casualidade. É um esperpento”, afirma Santiago Roldós.
Esperpento

É em “Luzes da Boemia” que Ramon del Valle-Inclán inaugura o “Esperpento”, teoria e gênero literário. Na peça, o protagonista Max Estrella afirma: “Os heróis clássicos refletidos nos espelhos côncavos dão o Esperpento. O sentido trágico da vida espanhola só pode dar-se com uma estética sistematicamente deformada”. O Esperpento nada mais é que a escolha de deformar a realidade para que se consiga refletir, mais fielmente, a própria realidade.

O “Esperpento” de Valle-Inclán encontra semelhanças com “Los caprichos”, série de 80 gravuras do pintor espanhol Francisco de Goya que utilizava o grotesco para satirizar a sociedade espanhola, sobretudo o clero e a nobreza, pouco mais de cem anos antes, no final do século 18. As gravuras de Goya serviram não apenas de inspiração para encenação de Santiago Roldós, mas para ilustrar a identidade visual do espetáculo que estreia no Teatro Vila Velha.

Teatro Épico na Bahia

“Luzes da Boemia” inaugura o projeto “Teatro Épico na Bahia”, realizado pelo Teatro Vila Velha com o apoio financeiro do Governo do Estado da Bahia através do Fundo de Cultura – Secretarias da Fazenda e da Cultura. Concebido pelo encenador Marcio Meirelles, o projeto busca colocar em discussão e trazer à cena montagens que têm como base esta forma de fazer teatro conceituada pelo dramaturgo e diretor alemão Bertolt Brecht, mas presente em diversas dramaturgias, anteriores e posteriores ao seu legado.
“A gente entende que o Teatro Épico é uma atitude crítica diante da vida. É como a linguagem do teatro reflete a sociedade, os movimentos sociais, políticos, de modo que o público participa ativamente dessa crítica, dessa reflexão. Aqui, não interessa que o público seja apenas embalado por uma história emocionante, mas que, ao se emocionar, ele tenha a consciência crítica do que está em sua frente, perceba que aquilo pode ser mudado e que o agente da mudança é ele mesmo”, explica Meirelles.

Para Meirelles, o projeto, que tem ainda uma montagem inédita prevista para o segundo semestre de 2017, dialoga com o atual momento do Brasil. “Estamos numa batalha de narrativas. A gente vai sendo envolvido por narrativas hegemônicas, produzidas pelas redes de comunicação aliadas aos sistemas de poder – financeiro, político, judiciário – que tentam inclusive apagar outras narrativas, distorcer fatos. E o Teatro Épico, de certa forma, desmonta o processo da narrativa, expõe como elas são construídas”, conclui.