Produtora trans do programa “Amor & sexo”, da Rede Globo conta detalhes da sua vida em entrevista

Genilson Coutinho,
04/10/2012 | 12h10


Ela nasceu com um nome que evita, a todo custo, pronunciar, e que está, ainda, no seu RG. Orgulhosa, prefere mostrar o crachá de seu primeiro emprego formal, temporário, como produtora do programa “Amor & sexo”, da Rede Globo. Ali consta seu nome social, que também está no e-mail de trabalho: Bárbara Aires.
— Meu pai, quando falam de mim, diz que eu morri. É verdade. Os rastros ainda estão num documento, mas, se Deus quiser, um juiz há de me conceder uma nova certidão.
No Rio desde 2005, a paulistana de Santo Amaro trabalhava, até o final do ano passado, no mercado do sexo. Quando aqui chegou, já em processo de transformação hormonal, procurou emprego, em vão. Já era conhecida por filmes pornôs e por uma entrevista com Luciana Gimenez. Fez o que sabia: sobreviveu.
— O Rio era um mercado mais lucrativo que São Paulo. Atendia num hotel através de anúncios na internet. Sempre de olhos bem abertos a uma oportunidade, para usar a frase clássica, de “sair dessa vida”. Da prostituição, feminina, masculina ou trans, há quem goste. Eu, não.
Paralelamente, cultivou o ativismo. Diretora da Astra Rio (Associação das Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro), representa os interesses da “classe” nos conselhos municipais e estaduais. Por exemplo, na conquista de decretos como os que obrigam o uso do nome social num Registros de Ocorrência e na oratória das filas médicas.
Esse know-how, que a levou a dar palestras em faculdades, conduziu-a, também, ao auditório do programa comandado por Fernanda Lima, que precisava de um depoimento sobre as diferenças entre trans e travestis. Chamou a atenção da direção: articuladíssima, era ótima candidata a ser consultora do show. Quando surgiu a vaga de produtora de reportagem, a porta se abriu.
— Mesmo com rendimento financeiro menor, decidi imediatamente me afastar da prostituição. Sei que ainda vai demorar para ser reconhecida profissionalmente: no momento, destaco-me pela exceção de estar numa grande empresa enquanto transexual não-operada, com crachá de mulher e usando o banheiro feminino sem drama.
Desilusão e decisão de mudar
Num arranjo algo metafísico, tudo conspirou para Bárbara “nascer mulher”. A mãe dispensou o ultrassom, tamanha a certeza. O enxoval era todo para “ela”. A cabeleira loura cacheada crescia, e na rua todos a achavam linda. A mãe silenciava. O pai surrava-a em casa. A certa altura, passou a raspar-lhe a cabeça uma vez por mês.
Na pré-escola, a professora desenhou no quadro-negro uma menina e um menino, explicou as diferenças genitais e a obrigatoriedade de fazerem uma criança. Ela correu para casa, chocada.
— Sabia que era diferente, mas não muito bem o motivo. Sorte minha mãe ter aberto a porta do banheiro e me impedido de usar a tesoura. Eu achava que aquilo era uma aberração.
Face à intolerância paterna, passou a fugir de casa, voltando vez por outra. Até os 12 anos viveu em calçadas, cobriu-se de jornais, mendigou, vasculhou lixeira fresca de lanchonete, banhou-se na represa do Guarapiranga. Teve passagens pelo SOS Criança. Na TV o ícone era Natasha Dumont, do show de calouros de Sílvio Santos.
— Eu perguntava: como alguém nascida como eu podia ser tão bela?
Talvez fosse gay, pensou. Chegou a voltar para casa, o pai convertido à Igreja Universal. Expulsa, acabou acolhida por um orfanato, retomando os estudos, daí ter feito o ensino médio.
Aos 16 já se travestia, fazia shows e programas. Teve um grande amor, que a queria homem.
— Foi uma desilusão: romântica, achava, e acho, que a gente se apaixona pela pessoa. Em nome dele, esperei até os 18, quando decidi deixar o cabelo crescer e partir para o hormônio.
O que veio depois é sabido e lamentado. A roleta da vida é inclemente e só beneficia transexuais que, nascidas em raras famílias abastadas e liberais, têm apoio, operam-se cedo e passam por mulheres desde o início, incógnitas.
— Essas são advogadas, arquitetas, médicas, e se casam bem. Se eu tivesse algum tipo de apoio, não estaria dando esse depoimento. Teria estudado teatro, feito faculdade. Mas acho importante me posicionar. Como disse Simone de Beauvoir, ninguém nasce mulher: torna-se mulher. É o convívio social, a personalidade, o carisma. Admitir outra identidade mata a luta e mantém o estigma.
Mesmo assim, ela reconhece que o mercado está se abrindo, sobretudo na esfera oficial. Pior é o acesso ao mercado formal de grande público: vendedora em shopping, cobradora, atendente de supermercado.
Mas difícil, mesmo, é o amor.
— A maioria dos homens não confessa, mas gostaria de sair com um travesti ou um trans. Muitos saem. Alguns se apaixonam. Mas, se você quer ser mulher, é inaceitável que eles gostem de outro ser humano que se identifica com um gênero que não é o seu original.
Moradora da Glória, num quartinho, ela tem 300 DVDs, ama Tim Burton, Al Pacino e Meryl Streep e adora ir ao teatro, quando convidada, pois o preço é do mal. Viu “Xanadu” e “Valsa número 6”. Tem uma cadela chamada Yumê: “sonho” em japonês. O maior: casar-se.
— Não necessariamente numa igreja, mas, sim, vestida de véu e grinalda. Só perde para dar à luz, privilégio que não terei. Mas um dia vou esbarrar na rua com alguém que vai deixar um monte de livros caírem e olhar nos meus olhos. Ele vai me proteger, como sexo frágil que sou. E vamos nos nos unir. Primeiro, no civil. Depois converter em casamento.
Falta, ainda a cirurgia, que ela fará na Tailândia, onde o processo é mais completo no que toca à neurofisiologia. Há propostas, em fase de projeto, de um documentário que acompanhe a transformação e possibilite financiar o procedimento. Mas, até segunda ordem, tudo é presente. E os votos de que, no futuro, o passado não se reproduza.
Matéria Originalmente publicada no Globo Rio

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