Pela 1ª vez em São Paulo, presas trans se formam em gastronomia

Genilson Coutinho,
02/03/2020 | 11h03
Detento trans recebe seu diploma no curso de gastronomia

“Estava na rua fazendo um monte de coisa errada. Caí aqui dentro e sofri para caramba. E agora, com o curso, aprendi valores que antes eu não tinha”, disse Anita, de 34 anos. Ela é uma das 11 detentas trans do CDP (Centro de Detenção Provisória) da Chácara Belém I, na zona leste de São Paulo, que se formaram em gastronomia. O curso, oferecido pela primeira vez na história de segurança pública do Estado, teve duração de três meses. “Eu nunca tinha me formado antes. Essa é a primeira vez que eu pude ser gratificada. É a minha melhor conquista e essa é uma vitória que eu vou levar para o resto da vida.”

Presa pelo artigo 157 (roubo mediante grave ameaça ou violência a pessoa), Anita conta que está no CDP do Belém há sete meses. “Não tinha estrutura, então eu fui pro crime para tentar sobreviver.”

Nos últimos três meses, Anita e outras dez detentas trans participaram do curso de gastronomia uma vez por semana — cada aula tinha a duração de mais ou menos 4 horas. As alunas aprenderam a fazer pratos que levam carnes e peixes, além de opções vegetarianas e sobremesas, como sorvete. “Mas não é só isso. O principal é que você aprende o que é parceria, o que é respeito, o que é o próximo”, relata. “Nas celas, junto com os outros presos, você pensa apenas em coisas ruins.”

A formatura da primeira turma de gastronomia de presas trans ocorreu no final de julho. A temperatura marcava 19°C, mas a área de convivência do CDP indicava facilmente 25°C. Isso porque só tinha sorriso no rosto, muitas risadas e uma satisfação sem fim das formandas. “Hoje é dia de festa. Não tem frio para atrapalhar”, disse uma delas.

No prédio ao lado, em uma sala de aproximadamente 40 metros quadrados, chamada de “escola”, está o agente André Luzzi de Campos, idealizador do curso. O projeto, chamado Diversidade à Mesa, surgiu da demanda formativa da população LGBT presa no Estado de São Paulo. Ele conta que a ideia nasceu do sentimento de ressocializar as apenadas: “Elas são humanas, acima de tudo”. “Erraram, sim. Mas estão cumprindo pena por isso, mas continuam sendo pessoas”, afirma.

O objetivo de Campos teve êxito, avalia Viviane, de 27 anos, também formanda. “Eu me senti de novo na sociedade. Eu me senti humana. Até porque lá dentro é só grade.” Presa pelo artigo 217 (estupro de vulnerável), está no sistema prisional há cinco anos — e há oito meses foi alocada para o CDP do Belém. “Quando termina uma aula, eu conto nos dedos quando vai ser a próxima”, sorri.

Ao receber o diploma na formatura, Viviane sorriu, agradeceu e logo foi mostrar para o companheiro, que também acompanhava a cerimônia. “Ele é a minha família. É tudo que eu tenho aqui dentro”, diz. O casal se conheceu dentro do sistema prisional há menos um ano.

Viviane convive dia a dia com mais nove pessoas, todas LGBT, em uma cela de aproximadamente 10 metros quadrados — elas se dividem em seis colchões. “É mais fácil porque aí não dá briga entre nós”, diz. Ela conta que há duas celas em todo o CDP destinado à comunidade, isso para justamente evitar desentendimentos. “Eu consigo perceber, pelo curso, o apoio que estão dando para nós e isso é muito importante”, acrescenta. “Porque, querendo ou não, nós LGBT estamos à margem da sociedade.”

Pratos e Histórias

As 11 detentas trans tiveram a supervisão da chef de cozinha francesa Marie-France Henry, dona de um restaurante no Largo do Arouche, no centro da capital paulista. Quando convidada para participar do projeto Diversidade à Mesa, ela conta que fez uma pergunta invés de uma resposta: “O que eu ia ensinar a elas?”

Após dias pensando em como poderia agregar na vida das 11 detentas trans, Marie aceitou o convite. No início, conta que escutou as histórias de cada uma e, a partir daí, planejou o curso. “Uma delas me disse que tinha saudades de comer Tambaqui (espécie de peixe), por que era um prato que a mãe fazia quando pequena na Amazônia.”

Então, a chef francesa discutiu a memória afetiva alimentar e, em seguida, realizou uma espécie de arvore genealógica da turma para, posteriormente, escolher os pratos que seriam ensinados durante o curso. “Escolhemos pratos que elas gostavam porque remetiam a tais momentos e colocamos no nosso cardápio”, diz.

Durante a oficina, Marie teve o auxílio de Francisco Sant’Anna, da Escola de Sorvetes, Leonardo Lago Bahiense, chef de cozinha, e Simone Gomes, educadora alimentar. “Conseguimos ensinar técnicas de cozinha, mas, mais importante, conseguimos passar amor. Amor esse que elas se sintam amadas do jeito que são”, finaliza Marie.

Renúncia?

A detenta Carol Castro, de 27 anos, também participou do curso de gastronomia. Para ela, a oficina significou reintegração social, física e psicológica, uma vez que “muitas encontraram no curso um abrigo”.

Presa pelo artigo 157 (latrocínio), está no sistema prisional há nove anos — falta sete “para sair”, conta ela. “Quem não faz parte desse mundo, eu aconselho a não entrar”, pondera. “Eu sempre corri atrás e agora estou aqui pra provar que não sou dessa índole.”

Carol fala sobre o seu processo de aceitação no presídio

Carol fala sobre o seu processo de aceitação no presídio

Reprodução

Carol relata que todo o processo não é fácil. “Dentro da ala, sofremos preconceito. Somos machucadas por sermos quem somos”, expõe. “É difícil. Muitas vezes isso perturba a gente.” Mas, segundo ela, o curso fez com que o foco fosse outro. “Mostrou que a vida continua. Nós temos que erguer a cabeça, temos que manter os pés firmes para vencer os obstáculos e as dificuldades”, diz.

Após a câmera da reportagem do R7 ser desligada, a detenta desabou. Segundo ela, no último mês, os pais e o irmão morreram em um acidente de carro na zona norte da capital paulista. “Eles estavam vindo me visitar aqui na prisão”, desabafa. “É uma dor que não tem fim”, reconhece. “Mas não posso desistir. Não agora.”

E a renúncia é algo que o coordenador do projeto, o agente André, também não sabe o que significa. Questionado sobre o maior aprendizado da oficina, ele é categórico: “Não desistir”. Com os olhos marejados, o agente diz que “ser servidor público é um ato vocacional, não é simplesmente passar em um concurso. É tentar a não retirada de direitos. É [proibir] a violação de direitos”.

O curso de gastronomia também mudou a percepção de Fran, de 35 anos. Durante a formatura, a detenta trans coreografou a música “Quando A Chuva Passar”, de Ivete Sangalo. Lançada em 2005, a canção mostra o personagem se declarando para a pessoa amada e esse amor, possivelmente, não termina agora. Para Fran, a música tem um sentido diferente. “Quando essas portas (da prisão) abrirem, quando toda essa tempestade passar, vai ser um novo sol, uma nova vida e vai ser tudo novo para nós”, afirma.

“Quando eu estava dançando, eu pensei em tudo o que passou durante o curso. E o que vale é o que foi aprendido, não onde aprendemos”, diz Fran, que cumpre pena há oito meses. “E foi mais do que estudar gastronomia, aprendi respeito”, avalia. Fran lembra do primeiro dia do curso: “São pessoas que nos trataram de igual para igual, que nos abraçam, que nos beijam, que nos aceitam como nós somos”.