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Pai grávido! Como um homem pode dar à luz e uma mulher trans amamentar?

Genilson Coutinho,
08/08/2022 | 12h08
Foto: Divulgação

Erika Fernandes, mais do que Roberto Bete, sabe bem o que é isso. Mulher trans, natural de Aracaju (SE), escutou com frequência que “construir uma família” ou até mesmo encontrar o amor não eram para ela.

Inclusive, chegou a ouvir conselhos —que eram dados com boas intenções— de que não deveria fazer a transição de gênero, momento em que mudanças corporais começam a aparecer após a reposição de hormônios (neste caso, estrogênio e progesterona).

“Diziam que eu teria uma vida solitária, sem um relacionamento, sem alguém para me amar. Diziam que a vida de trans é rua, prostituição e drogas, tudo de pior”, lembra a empreendedora de 28 anos.

No entanto, ela passou pela transição, há cerca de 6 anos, e manteve o sonho da família —que foi realizado no último dia 10 de maio, com o nascimento de Noah, registrado no documentário Pai Grávido, produzido por MOV, a produtora de vídeos do UOL, VivaBem, a plataforma de saúde e bem-estar do UOL, e o Núcleo de Diversidade do UOL. O vídeo está disponível acima e no YouTube.

Roberto, 32, conheceu a mãe de seu filho em 2019, pelas redes sociais —o casal é bem ativo nessas plataformas, onde mostra sua rotina. No Instagram, Roberto tem 51 mil seguidores e Erika, quase 57 mil.

Ficaram um tempo juntos, mas Erika já queria namorar sério e constituir família. Beto, como é chamado, estava no “ápice da transição” e não desejava ser pai naquele momento, pois tinha acabado de fazer a mastectomia —cirurgia de remoção completa das mamas que alguns homens trans podem realizar.

“Estava me sentindo gato. Queria curtir a vida. Tinha saído de um casamento, fiquei muito tempo com uma pessoa. Não pensava em me casar e ter filho”, conta.

Depois de 6 meses praticamente sem se falarem, em maio de 2020, Erika resolveu mandar mensagem para desejar feliz aniversário a Beto. Eles voltaram a conversar e as coisas desenrolaram-se rapidamente. Começaram a namorar sério e resolveram dar um novo passo: tentar ter um bebê.

A decisão não foi nada fácil, principalmente para Roberto. Segundo ele, a ideia de um homem engravidar era estranha. Mas com ajuda indireta de Erika, passou a olhar a possibilidade de gravidez de outra forma e foi acostumando-se com a ideia.

“Essa vontade dela de ser mãe despertou muito esse meu querer. Quando comecei a conhecê-la mais profundamente, vi o ser humano que a Erika é e a mãe que poderia se tornar. Isso despertou ainda mais minha vontade de ter um filho com ela”, diz o empresário.

Inicialmente, o plano de Roberto era engravidar quando chegasse aos 35 anos, ou seja, dali a 5 anos. Só que algo começou a preocupar muito o casal: a terapia hormonal que ambos realizavam havia mais de 6 anos. Os dois temiam terem se tornado inférteis e começaram a acreditar que não conseguiriam engravidar de forma natural, como desejavam.

“Será que meu útero ainda estará apto aos 35 anos?”, pensou Beto, que na época estava com 30. “Se não tentar agora, será que vou conseguir depois?”, “Será que vale a pena arriscar?”, “Será que não é melhor fazer isso logo?”. Ele se questionava o tempo todo.

Piora do humor e altos e baixos do casal: os efeitos da interrupção dos hormônios

Antes, é importante deixar bem claro que nem todas as pessoas trans realizam terapia hormonal, também conhecida como hormonização. Roberto e Erika faziam o tratamento e tiveram de interrompê-lo até Beto engravidar —e ele continuou sem usar testosterona durante a gestação, para não prejudicar o desenvolvimento de Noah.

Quando pararam com a terapia, os dois sentiram no corpo os efeitos dos hormônios —e da falta de alguns deles—, tanto física como mentalmente. Beto começou a se sentir mais desanimado. Muitas espinhas apareceram no rosto, além de uma irritação maior entre eles —por causa da alteração de humor, que piorou ao interromper o tratamento hormonal, e também pela ansiedade de querer engravidar logo.

Na época, a tensão foi tamanha que eles chegaram a se separar, mesmo morando na mesma casa. Erika ficava no sofá e, Roberto, no quarto. Quando tinham resolvido que cada um seguiria seu caminho, a empreendedora notou algumas mudanças significativas em Beto.

“Ele estava irritado. Uma hora me queria por perto e, depois, longe. Também começaram alguns desejos estranhos, Beto queria comer coisas ácidas, como limão com sal e verduras em conserva. Além disso, a menstruação dele estava atrasada”. Erika Fernandes

A empresária logo correu na farmácia para comprar um teste de gravidez. Deixou na pia do banheiro e esperou Roberto realizar o exame. Ele aguardou alguns dias, achava besteira fazer o teste, pois não imaginava que poderia estar grávido. No entanto, o resultado deu positivo: no display aparecia a mensagem “grávida” —no caso de Roberto, grávido— e com o símbolo “+ 3” ao lado.

Beto não acreditou —o momento de surpresa, gravado por ele, está no documentário do UOL. Precisou de mais dois exames, um de farmácia e outro de sangue (o de beta hcg), para entender que, enfim, o sonho se concretizava: estava grávido!

Apesar de o resultado indicar que Beto estava quase com 3 meses de gestação, a ficha não caiu e o empresário seguiu em dúvida. Ele achava que não havia feto algum em sua barriga.

“Erika e eu tínhamos brigado, estávamos quase um mês sem ter relação. Pensei que poderia ser um cisto”, conta. “Passamos no médico e, no exame de ultrassom, finalmente tivemos a certeza de que era um bebê.”

Quando fizeram a conta, lembraram-se de uma viagem a Fortaleza (CE) e, enfim, tudo se encaixou.

“Sempre quis ser pai. Era um sonho. Mas até 3 anos atrás, nunca pensei que seria o gerador desse filho. Na minha cabeça, iria ser pai, só que de outras formas: com adoção ou pela inseminação artificial da minha companheira. Essa ideia de eu poder gerar um bebê foi nova”. Roberto Bete

Depois de um alarme falso no dia 6 de maio, momento em que o casal correu para a maternidade, Noah nasceu só quatro dias depois. Beto começou a sentir as contrações durante a madrugada e, após 12 horas, deu à luz por parto natural, aquele em que o bebê nasce por via vaginal.

O que muda na gravidez de um homem trans?

Em comparação com uma mulher cis —que se identifica com o gênero de nascimento—, a gestação de um homem trans não tem nenhuma diferença. O único ponto de atenção é que a pessoa gestante, caso faça terapia hormonal, interrompa o uso de testosterona —exatamente como Roberto fez.

Segundo os especialistas, se o homem trans não for amamentar, a hormonização pode ser retomada após o nascimento do bebê, idealmente depois do puerpério —período pós-parto que dura cerca de 45 dias e no qual o corpo passa por mudanças físicas, emocionais e, principalmente, hormonais (por isso é indicado esperar esse momento).

“Mas, em termos de atendimento médico, não muda nada durante os nove meses. É um pré-natal como outro qualquer. O que muda é a questão do acolhimento”, explica Ariane de Castro Coelho, ginecologista e obstetra do CRT (Centro de Referência e Treinamento DST/Aids), em São Paulo, onde o casal fez o pré-natal e segue com a hormonização.

Pioneiro no Brasil, o centro foi criado em 2010, oferecendo acolhimento, avaliação médica, endocrinológica, proctológica, fonoaudiológica e de saúde mental. A unidade, localizada no bairro Santa Cruz, zona sul de São Paulo, atende cerca de 3.000 pacientes por ano.

Por conta do ambulatório de travestis e transexuais, essa população, quando engravida, é também atendida no centro de referência. “Aqui, nós sabemos lidar com a questão de gênero. Por isso incluímos mais pacientes, para evitar discriminações ou outras dificuldades”, conclui a médica.

No caso de Roberto e Erika, eles foram uma “exceção” no ambulatório de pré-natal do CRT, pois os dois já faziam acompanhamento com os médicos do centro. Beto, desde 2015 e, a esposa, assim que o conheceu. Eles fizeram questão de continuar o atendimento lá.

Porém, ao fazer exames em outros lugares, como os ultrassons, o casal vivenciou situações desagradáveis. “Já começou na portaria. Quando a gente chegou no local, o segurança falou: ‘Olha, você tem que esperar lá fora, só pode entrar a paciente’, lembra Beto.

“Na hora de fazer a ficha, a recepcionista viu que eu era o paciente. Ouvimos alguns comentários… Não me tiraram da sala de espera e eu continuei lá. Quando a médica chamou, entrei com a Erika na sala, e a especialista falou: ‘Senhor, só a paciente, por favor’. Aí eu sentei na cadeira e a médica percebeu: ‘Ah, você é o paciente. Desculpa’”.

Erika está amamentando Noah: como é possível?

Assim que o casal descobriu a gravidez, no fim de setembro de 2021, Erika pesquisou se existia a possibilidade de ela produzir leite para amamentar. Quando descobriu que a resposta era sim, buscou casos bem-sucedidos. “Não achei mulheres trans que lactaram, mas encontrei médicas que faziam indução da lactação”, conta a empreendedora.

Em conversa com as especialistas, logo perguntou: “Sou uma mulher trans, meu esposo está grávido e eu quero amamentar. É possível?” A médica falou: “Sim, é possível”.

Animada, deu início a um processo que superou as expectativas das especialistas responsáveis pela indução da amamentação.

Além de utilizar estrogênio e progesterona por conta da transição —hormônios que voltou a tomar logo após a confirmação da gravidez de Roberto—, Erika passou a ingerir a domperidona, remédio indicado para problemas estomacais e que só pode ser suplementado sob orientação médica.

Juntos, o estrogênio, a progesterona e a domperidona são capazes de elevar o nível de prolactina, hormônio responsável por induzir a produção de leite pelas glândulas mamárias, além de aumentar os seios. Como parte do tratamento, há ainda a estimulação das mamas com auxílio de uma bomba para tirar leite —parte fundamental para a produção do alimento.

Com essa abordagem, qualquer pessoa com glândulas mamárias é capaz de produzir leite e amamentar um bebê. Mas, conforme explica Ana Thais Vargas, endocrinologista ginecológica pela Santa Casa de São Paulo e uma das especialistas que cuidou de Erika, não é todo mundo que pode tomar as medicações. Há contraindicações para o uso de hormônios e, inclusive, para a domperidona, que, apesar de encontrada facilmente nas farmácias, pode causar problemas de saúde se ingerida sem orientação.

“A gente mira num efeito colateral, que é aumentar a prolactina, mas podemos acertar outro, que é a arritmia cardíaca e taquicardia [condições que elevam o risco de um infarto]. Então, precisamos saber se a pessoa vai aguentar as doses diárias de domperidona”, afirma.

Por que Beto não amamentou Noah? Ele realizou a mastectomia (cirurgia de retirada das mamas), portanto não tem mais glândulas mamárias e não pode produzir leite —porém, mesmo se pudesse, o empresário não teria vontade de amamentar.

Mas Erik Trovão, endocrinologista do Hospital das Clínicas da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e membro da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia), reforça que homens trans que não tenham realizado a mastectomia podem amamentar.

Caso esse homem trans deseje isso, é importante que ele deixe de usar testosterona enquanto alimentar o bebê, pois o hormônio pode impactar a saúde do feto —por isso a terapia com a substância também é interrompida na gestação.

Terapia hormonal impacta fertilidade?

Dúvida de Beto e Erika quando decidiram engravidar, essa é uma pergunta difícil de responder. De acordo com os especialistas consultados por VivaBem, depende muito de cada pessoa.

A terapia hormonal pode, sim, afetar a fertilidade de mulheres e homens trans, mas a ciência não sabe ao certo de que forma —não há estudos suficientes que definam essa resposta.

Acontece que a testosterona bloqueia a produção de estrogênio, hormônio responsável pelo trofismo (tamanho normal) do útero. Por isso que o volume do órgão pode mesmo diminuir. “Poderíamos comparar com a atrofia do útero que acontece após a menopausa, pela ausência do estrogênio”, explica Tavares.

Ao interromper a terapia, o esperado é que o útero volte ao tamanho normal e, após um período (podem ser meses ou anos), o homem trans volta a ovular (mas não necessariamente a menstruar) e, consequentemente, ser fértil —como aconteceu com Roberto.

Mas, segundo Aleide Tavares, ginecologista do Espaço Trans do Hospital das Clínicas da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), da rede Ebserh, o uso prolongado da testosterona realmente pode causar infertilidade provisória ou definitiva em um homem trans. “Mas ainda não sabemos qual fator determina se será temporária ou permanente”, explica.

No caso de uma mulher trans, tanto o bloqueador de testosterona quanto o estrogênio vão alterar a produção de esperma pelo testículo.

“Muitas pacientes relatam que o esperma fica mais fino e mais transparente”, diz Carué Contreiras, médico do CRT Santa Cruz, em São Paulo. “A alteração está relacionada à produção de espermatozoides. Por isso a capacidade de uma mulher trans ou travesti de reproduzir também pode ficar reduzida”, completa.

Fonte: UOL / Viva Bem