Opinião

Opinião: Os moleques de Anitta em ‘Vai malandra’

Tiago Duque,
29/12/2017 | 10h12

A internet, nesse final de ano, deu visibilidade ao mais recente clipe da cantora Anitta. Provavelmente, quando você ler esse texto, ele já vai ter tido quase 100 milhões de visualizações. A música “Vai malandra” já causou muitas discussões sobre feminilidades, em especial, se as mulheres aparecem como objeto de desejo ou como alguém em uma posição de poder sobre o próprio corpo.

Aqui, diferente disso, vou refletir sobre algumas masculinidades presentes nas imagens, mais precisamente sobre os moleques que aparecem no clipe. Eles estão cantando, dançando e em performances sedutoras, como as mulheres, quase o tempo todo, ainda que em menor número do que elas.

O clipe, enquanto um artefato cultural, como qualquer outra produção midiática, exerce uma espécie de pedagogia cultural, via a transmissão de valores e atitudes. Isso não tem um sentido único e absoluto sobre o que é exibido e, posteriormente, apreendido pelo público. Por isso não tenho a pretensão de apresentar a interpretação “correta” do vídeo. Antes, é mais um olhar sobre parte do que ele pode significar.

O tipo de corpo dos moleques (alguns modelos profissionais) do clipe, especialmente daqueles que aparecem em destaque na produção, nesse e em outros contextos, é tido como objeto de desejo de muitos homens e mulheres. Não se trata aqui de apontar, de forma simplista, que os homens ocupam uma posição de objeto, ainda que essa possa ser uma possibilidade ao assistirmos o vídeo. Em uma sociedade machista, evidentemente não na mesma medida e proporção que as mulheres, homens também podem ser objetificados.

Mas, o que me parece mais interessante é pensar no corpo masculino produzido para o consumo, inclusive erótico, e o que isso nos ensina. Classe social, cor, idade, profissão, estilo corporal e espaço público fazem toda a diferença quando assunto é desejo e masculinidade. O clipe explora muito bem isso, especialmente quando não são todos os corpos masculinos que são apresentados como desejáveis. Não são todos os moleques que aparecem inteligíveis como corpos hegemonicamente atraentes.

Por exemplo, o corpo masculino mais desnudo está no início do vídeo, na cena em que várias mulheres aparecem sobre a laje, tomando sol. O moleque, dançando, joga e passa óleo nelas. Usa apenas tênis, sunga (marcando o genital) da cor avermelhada, correntes brilhantes no peito e um lenço cor de rosa, que em nada ameaça sua masculinidade, amarrado na cabeça. Tem o corpo tatuado, sem pelos, pele escura com óleo destacando os músculos, mas sem exagero. Segundo entrevista dada por ele em um programa de TV, ele trabalha como bartender, é do Vidigal.

Em contrapartida, poucos segundos antes, quem aparece é o mototaxista, magro, que não mostra o rosto por estar equipado com capacete. Ele veste, em cores escuras, calça jeans e camiseta. Ele leva a cantora até o alto do morro, mas no clipe ela não aparece pagando o serviço. Nele, a cor amarela é a única de maior destaque, estampada no colete de segurança, tipicamente usual entre esses profissionais. Também não tem a sua voz expressa no clip. Tampouco é sexualizado como os demais. Provavelmente, o que ele veste, diferente dos outros, e da própria cantora, não está à venda na rede de lojas, bastante popular, que patrocina o clipe.

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A performance de gênero, aquilo que Judith Butler chamou de “repetição estilizada de atos”, constitui a materialização dos corpos tidos como de homens, mas inteligíveis de diferentes formas em se tratando de desejo, ainda que, nesse caso, lidos todos como masculinos, negros, pobres e joviais.

As intersecções dessas diferenças são jogos complexos de poder que alocam os moleques em posições distintas na escala de atração física. Além disso, o fato deles não serem brancos, isto é, serem negros, não significa que sejam negros de pele da cor preta. Isso faz todo o sentido no contexto racista que vivemos, em que, no geral, homens de pele mais escura, uma minoria significativa no clipe, não estão no mesmo status valorativo de homens, ainda que negros, de pele mais clara.

Assim, não basta performatizar uma masculinidade inteligível para ganhar a cena como alguém atraente. Afinal, em um outro exemplo, no bar, em torno de uma mesa de sinuca, há uma mulher masculinizada, de corpo gordo, coberto por roupas pouco femininas e de cores escuras, cabelos curtos descoloridos como alguns dos moleques do clipe, segurando uma garrafa de cerveja e usando as mesmas correntes brilhantes que eles, mas, mesmo inteligível como masculina, ela passa despercebida das pessoas menos atentas aos detalhes do vídeo.

Por sua vez, não há homens afeminados no clipe. A pessoa trans que aparece entre mulheres, é lida como feminina, não faz sentido encará-la como um homem feminino. Em nada significa que não existam gays no clipe, mas, de fato, não parece ser um bom negócio expor as bichas pretas afeminadas não trans nas cenas. Seja para as mulheres masculinizadas, ou para os homens afeminados, o desejo (leia-se reconhecimento) é sempre um desafio de (in)visibilidade.

Os demais homens, ainda que jovens, mas não tão jovens como os que mostram o corpo sarado, aparecem cobertos por jaquetas e camisetas, especialmente os gordos ou não tão magros. A questão não é a roupa em si, mas as maneiras dos seus usos, visto que os jovens tidos como atraentes também vestem jaqueta, mas aberta na frente, sem camiseta, mostrando a barriga musculosa e o peito com as joias.

Assim, o que Paul Preciado chamou de “próteses de gênero” também constituem a materialidade dos corpos, para além das performances de gênero. São incorporações/materialidades que implicam no agenciamento do desejo. As roupas dão o efeito protético de uma sociedade que cria a compreensão do que é ser homem e/ou mulher a partir delas. As vestes têm o poder de produzir os nossos gêneros, de forma tão diversificada, quanto desigual.

Por fim, como é frequente no estilo musical que Anitta escolheu, os moleques tidos nas redes sociais como os mais bonitos, riem, inclusive na gravação da própria música. O riso, em nossa sociedade, misturado com o desejo erótico, é capaz de fazer-se vendável quase tudo hoje em dia. E há quem diga que o riso perdeu seu poder político.

Parte do sucesso do vídeo está nesta masculinidade viril que Anitta soube explorar muito bem. O clipe “Vai malandra” é um desses artefatos culturais que anunciam o que somos, em termos de poder, subjetividade, desejo, estereótipos, contradições, diferenças, etc. E, mais que isso, produz um conjunto de corpos inteligíveis que podem ser vistos, tanto como objetificados, como agenciadores de desejos valiosos em nossos dias, em prol do seu reconhecimento, tudo junto e ao mesmo tempo, em relação, e não em oposição ou exclusão.

Dito de outro modo, tanto para as mulheres, como para os homens do clipe, uma coisa é certa: a polêmica da exposição dos corpos nesse funk diz mais sobre quem nós somos, do que o artefato em si. É essa pedagogia cultural que precisamos aprender a ler para ampliar os processos de reconhecimentos de jovens que estão no vídeo, como também daquelas pessoas que estão ouvindo e consumindo o “Vai malandra” nas redes sociais e nos espaços de sociabilidade off-line nas periferias e nos centros das nossas cidades.

*Tiago Duque, professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), líder do Impróprias – Grupo de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Diferenças.