Nome social: visível aos olhos, invisível no mundo jurídico
Por Dra. Bethânia Ferreira
Em uma coluna recente já discorremos aqui sobre a possibilidade de uso do nome social em determinados espaços administrativos. Falamos ainda que, apesar de servir como uma indicação da necessidade de alteração legislativa, a utilização do nome social em alguns espaços não garante o direito fundamental à identidade de gênero. Fato é que esse direito somente estaria efetivado com a alteração legislativa, haja vista que quando nos referimos aos direitos da população LGBT eles devem estar gravados “a ferro e fogo” para serem respeitados.
O nome social, apesar de bem-vindo, não garante os direitos das pessoas transexuais. Logo, quando falamos em direito à identidade de gênero precisamos avançar para a alteração do registro civil. Com isso, conseguiremos adequar o nome e o sexo do registro do nascimento à identidade de gênero do indivíduo.
No Brasil, não há uniformidade entre as decisões sobre a alteração de registro de pessoas trans, o que gera uma discrepância de entendimento entre os julgadores e faz com que o direito ao nome civil de alguns se ajustem à sua realidade, enquanto que outras pessoas não conseguem alcançar uma sentença judicial que se coadune com os princípios de direitos fundamentais.
Não há no texto da Lei n. 6.015/1973, Lei de Registros Públicos, qualquer menção à possibilidade de alteração, ou não, do registro civil de pessoas transexuais. Juridicamente, o que temos é uma interpretação dos artigos 58 e 55, parágrafo único, considerando que será possível a alteração de registro quando houver “apelido público notório” ou/e “prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores”, devendo ser entendidos como exposição vexatória os nomes dissonantes do aspecto psicossocial do transexual, travesti ou transgênero.
Por outro lado, o art. 57 da supracitada lei exige que a alteração posterior de nome possa ser concedida, apenas como medida excepcional, por sentença judicial. Conjugando os dispositivos legais, inferimos que a possibilidade de alteração de registro civil somente pode ser admitida por sentença judicial, quando houver entendimento do magistrado que se trata de “apelido público notório” ou/e “prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores”.
Do mesmo modo, não existe qualquer menção legal que indique a possibilidade de alteração do sexo, cabendo ao magistrado decidir se haverá alteração do sexo em todos os casos ou somente em caso de cirurgia de transgenitalização.
Diante do “requisito” – realização de cirurgia de transgenitalização – sobre o tema, cabe trazermos alguns questionamentos: sendo a identidade de gênero formada por características psicossociais de autodeterminação, teria cabimento exigirmos a realização de cirurgia de transgenitalização para garantir alteração no sexo do registro? A alteração do prenome é suficiente para aplacar a desconformidade entre o mundo jurídico e a realidade? Transexuais que não desejam ou não podem, por uma questão de saúde, fazer a transgenitalização devem ter registrado um sexo que não condiz com o gênero de identidade?
Desse modo, fica evidenciado que somente uma atuação legislativa condizente com os direitos humanos pode alterar, substancialmente, a vida das pessoas que pretendem ter garantido seu direito à identidade de gênero.
Alguns projetos de lei sobre o tema estão tramitando no Congresso Nacional e, apesar de regularem a alteração de registro civil, continuam mantendo a necessidade de alteração pela via judicial, com exceção do PL 5002/2013, de autoria dos deputados Jean Wyllys e Érika Kokay. O Projeto de Lei n. 5002/2013, caso aprovado, retirará do judiciário o poder sobre o reconhecimento da identidade de gênero, cabendo exclusivamente à pessoa trans apresentar manifestação que indique a vontade de alterar, no Cartório de Registro Civil, seu registro original, sem necessidade de qualquer intervenção judicial.
Seguramente, o Projeto de Lei 5002/2013 é o que se aproxima da realidade. O referido projeto traz ainda, em seu art. 12, a proposta de redação para o art. 58 da Lei de Registros Públicos, permitindo-se a alteração do prenome, nos casos de discordância com a identidade de gênero autopercebida, aplicando-se a lei de identidade de gênero, que se originará do PL 5002/2013 após sua votação, sanção e publicação.
O PL 5002/2013 encontrava-se, desde 27/02/2014, aguardando designação de relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, o que ocorreu em 26/05/2015, consoante informação do sítio do Congresso Nacional.
Em face desses e de tantos outros pressupostos, no que concerne ao tratamento de temática essencialmente polêmica, a edição de uma lei federal que se proponha a tratar sobre a matéria, fundamentando-se no direito à identidade de gênero e prescindindo de autorização judicial, é a solução para o fim do processo de sujeição das pessoas trans ao crivo do Judiciário. Estaremos, pois, vislumbrando o início da garantia dos direitos fundamentais e dos direitos da personalidade dos “invisíveis jurídicos”.
Por Dra. Bethânia Ferreira, Defensora Pública.