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Não vou celebrar meu aniversário. Porquê?

Armando Januário,
24/02/2021 | 09h02

Hoje, completo 39 anos. Sinto-me em paz tanto comigo quanto com a realidade externa, especialmente a partir de determinadas vivências e aprendizagens ao longo dos últimos 10 anos, com travestis e transexuais. De um cristofascista, passei a estudar e principalmente aprender sobre diferença e diversidade, inclusive sobre como esses dois conceitos são distintos. Quando falamos em diferença, reconhecemos que outras pessoas não são iguais a nós, mas nem por isso, inferiores. Elas podem ser diferentes sob uma série de aspectos: raça, etnia, orientação sexual, identidade de gênero… nosso papel frente às diferenças deve ser de respeito, aceitação e convivência amorosa. De fato, o amor é o afeto mais importante na constituição do sujeito, embora segundo o psicanalista Jaques Lacan (1901-1981), esteja intimamente ligado ao ódio, em uma relação denominada amódio, de acordo com o Seminário Encore, realizado entre 1972 e 1973; amamos, mas, por vezes, nos alicerces desse amor, está presente o ódio, que se não reelaborado, eclode, ameaçando à humanização. Por outro lado, pensar em diversidade é admitir a singularidade dos indivíduos e respeitá-la, se mantendo, por vezes, em uma relação de distanciamento. Nessa perspectiva, temos o reconhecimento das diferenças como uma via integrativa, positivando as relações, ao passo que compreender e respeitar as diversidades pode estagnar o processo civilizatório, contribuindo para que cada grupo social permaneça em locais fixos e por que não dizer, em estado de guetização.

Partindo dessa primeira reflexão, percebemos relações de poder envolvidas no reconhecimento das diferenças e diversidades. Poder tanto externo a nós, como também aspecto estruturante da nossa formação enquanto sujeitos, conforme a filósofa pós-estruturalista Judith Butler (1956-) explicita em sua obra A vida psíquica do poder: teorias da sujeição, publicada em 2017. Poder que atua como dispositivo de controle e se prolifera a partir de discursos de dominação, provocando subalternidade, na visão do filósofo Michel Foucault (1926-1984), expressa em História da sexualidade I: a vontade de saber, de 1976. Poder que imprime um profundo mal-estar à civilização, haja vista desencadear o sacrifício das pessoas em prol dos interesses da coletividade. Tão bem discutido por Sigmund Freud (1856-1939) em O mal-estar na civilização, célebre ensaio de 1929, o mal-estar é resultado das pessoas deixarem de lado a sua própria essência, em nome das exigências culturais. Em termos simples, para viver em sociedade, o indivíduo submerge seus próprios impulsos. Todas as pessoas, em certa medida, fazem isso diariamente.

Vivemos um aprofundamento desse mal-estar, sob a face de uma verdadeira distopia nos últimos anos, semelhante a 1984, lançado no distante 1949, por George Orwell (1903-1950). Inseridos em uma Revolução Industrial 4.0, observamos a ascensão de poderes autoritários, dispostos a nos controlar e reduzir nossa capacidade de pensar por nós mesmos. Nessa perspectiva, o neoliberalismo radical ameaça os poucos marcos civilizatórios alcançados após os dois maiores conflitos mundiais do século passado. Caminha rumo à destruição de grupos sociais historicamente discriminados, difundindo a ideologia neofascista acerca de quem merece viver e quem sequer merece ser reconhecido como vida.

Primeira mulher trans da PM de Santa Catarina luta por reconhecimento — Foto: Priscila Diana/Arquivo Pessoal

Dois exemplos deixam isso bastante evidente: Lorena Muniz, mulher transexual que, sob efeito de anestesia para realizar procedimento de implante de próteses mamárias, foi abandonada para morrer em incêndio ocorrido no interior da clínica que se encontrava e Priscila Diana, primeira mulher transexual a exercer a função de sargento da Polícia Militar em Santa Catarina, atuando apenas em atividades administrativas no quartel da sua lotação, desde quando iniciou sua transição, há mais de dez meses. Se por um lado, Lorena foi uma existência considerada como não-vida, Priscila também é, apesar das situações distintas: Lorena foi abandonada para morrer em um incêndio, Priscila está sendo “morta” diariamente, por não ter sua identidade de gênero legalmente reconhecida. Em relação a Priscila, a situação se agrava, haja vista ela ter comandado ações da PM catarinense antes de iniciar a transição em março de 2020. Agora, ela está reduzida a uma sala, com funções abaixo daquelas que desenvolvia. Não obstante, a história de Lorena não é menos grave, porquanto demonstra a transfobia em seu aspecto mais perverso: deixar uma vida para morrer, por não a considerar como vida. Sabemos que se Lorena e Priscila fossem pessoas cisgêneras, seguramente a primeira estaria viva e teria realizado seu sonho e a segunda estaria em pleno exercício das suas atividades de trabalho. O poder que controla e se dissemina no interior da sociedade, decide quem pode ser considerado vivível e produtivo: pessoas cis e heterossexuais.

Frente a essa realidade cada dia menos democrática, potencializada pela pandemia da Covid-19, a qual atestou a necropolítica e o caráter anti-humano do Governo Federal, na figura do Presidente da República, não enxergo razões para festejar. Pelo contrário, o momento é de reflexão e combate ao pensamento obscuro, terraplanista, e, sobretudo, negacionista, propagado pelo mandatário da Nação, eleito em um processo repleto de mentiras e calúnias: sobraram fake news nas eleições de 2018 e atuações ilegais da farsa chamada Lava Jato, que agora cai por terra.

Ante esse cenário, travestilidades e transexualidades afrontam o poder dominante e abrem caminho para viver com as diferenças. Elas nos ensinam e podem nos libertar do constante e violento mal-estar presente em nossa sociedade transfóbica, mostrando novas formas de construção da subjetividade e trilhas inovadoras para a retomada da democracia. Por hora, elas me ensinam que hoje nada tenho a comemorar e que isso é um ato político!

Sobre o autor:

Mestrando em Psicologia pela UFBA. Psicólogo graduado pela UNEB e Graduado em Letras com Inglês pela mesma instituição. Pós-graduado em Psicanálise; em Gênero e Sexualidade; e em Literatura. Autor do livro Por que a norma? Identidades Trans, Política e Psicanálise. Instagram: @januario.psicologo.