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Mortes em decorrência do HIV são maiores em mulheres negras

Genilson Coutinho,
10/01/2022 | 12h01
Foto: Reprodução AG. Aids

Antes de enfrentar o preconceito por ter contraído o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) há 22 anos, Rosalina do Carmo Santana já encarava, como mulher negra e periférica, uma sociedade racista, machista e elitista. Seu teste positivo para HIV se deu logo depois de outro teste positivo: o de gravidez. Assim, viu-se também mãe solo, vivendo com o vírus, e, conforme relata, “com o cérebro destruído”, que é como se refere ao abalo psicológico causado por uma trajetória de discriminação que seria ainda mais intensificada com as descobertas feitas naquele tempo.

Sua própria experiência fez com que ela não recebesse com surpresa o resultado da pesquisa do Observatório MulherES, divulgada em 31 de dezembro, que mostra que no Espírito Santo as mulheres negras morrem mais em decorrência do HIV do que as não negras. Para ela, nas negras o abalo por causa da descoberta do vírus é maior diante do fato de que terão que enfrentar mais um estigma, fazendo com que muitas delas até mesmo desistam do tratamento, fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Em 2019, segundo o estudo, o número de negras que morreram por causa do vírus foi de 54, e o de não negras, 21. São apresentados dados a partir de 2010. Desde então, 509 negras faleceram, enquanto a quantidade de não negras foi de 322. A pesquisa, feita pelo Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), governo do Estado do Espírito Santo e Secretaria Estadual de Economia e Planejamento (SEP), utilizou dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e pelo Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC), do Ministério da Saúde.

Rosalina relata que a grande parte das mulheres negras, assim como ela, são periféricas, estão em trabalhos precários e criam seus filhos sozinhas. “Muitas, ao descobrir que estão com HIV, acham que nem vale a pena fazer o tratamento, pois é mais um estigma na vida. Não é um estigma, é mais um. Se tem uma coisa que o vírus consegue manipular é o cérebro, se a pessoa não tiver muito convicta de que precisa reagir, que precisa viver, o vírus derruba”, diz, recordando que um dos motivos que a fez querer viver foi o filho que iria nascer.

Rosalina, que contraiu o vírus do ex-marido, foi diagnosticada ao fazer pré-natal, quando já havia se separado. Seu namorado, o pai da criança, não contraiu. Registrou o filho, mas sempre foi ausente afetivamente e financeiramente. Uma das grandes preocupações de Rosalina foi o medo de morrer antes de o bebê chegar à maioridade. “Meu cérebro foi destruído por pensar na possibilidade de morrer antes de ele chegar aos 18 anos. Ele só tinha a mim, ficaria desamparado. Pensava: quem vai cuidar dele? Como vai ser?”, recorda

Para Rosalina, uma criança negra sozinha ficaria ainda mais desamparada, acrescido ao fato de que carregaria o estigma de viver com o HIV e de ser filho de “mãe que morreu de Aids”. Ela acreditava que, a partir dos 18 anos, ele já poderia caminhar melhor sozinho, e foi justamente isso que aconteceu. Hoje, com um pouco mais de 20 anos, é ele que ampara a mãe, que atualmente se encontra desempregada. Rosalina elogia o tratamento fornecido pelo SUS, mas aponta necessidade de melhorias.

Ela afirma que é possível fazer consulta com infectologista e ter acesso aos antirretrovirais, possibilitando que a pessoa fique com a carga viral indetectável, ou seja, que de tão baixa não é detectada no exame, inclusive, sem possibilidade de infectar outras pessoas. Entretanto, Rosalina defende que é preciso ter acesso também a profissionais como psicólogos para que não seja preciso recorrer à rede privada, o que impossibilita principalmente as mulheres negras de acessar o serviço por não terem condições de pagar.

Além de ter a certeza de que o filho não ficaria desamparado, outra motivação de Rosalina para prosseguir com o tratamento foi a Rede de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, da qual faz parte. Ela explica que o grupo luta pelos direitos das pessoas que vivem com o vírus, “acolhe e faz sentir que não estamos sós”. “A gente vê que tem pessoas vivendo bem, que têm perspectiva de futuro”, diz. Os encontros da Rede são mensais. “Conversamos, apoiamos uns aos outros, procurando saber as demandas das pessoas que vivem com HIV em todo o Estado”, afirma.

‘Infelizmente não é nenhuma surpresa’Assim como Rosalina, o professor do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), pesquisador de doenças infectocontagiosas e integrante do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (Neab) dessa instituição de ensino, Thiago Nascimento do Prado, não recebeu com surpresa os dados do Observatório MulherES. “Infelizmente não é nenhuma surpresa”, diz, destacando que não dá para focar somente no processo de infecção, precisando ser considerado o contexto histórico das mulheres negras.“Existe uma vulnerabilidade maior da mulher negra, como a questão de gênero, raça e classe social. O desfecho desfavorável existe, mesmo o Brasil tendo programas de HIV com tratamento gratuito, se esbarra no racismo estrutural, na falta de compreensão das particularidades da mulher negra”, observa. Thiago destaca que o atendimento do profissional de saúde muitas vezes é marcado pelo racismo, com comentários como “mas também, não usou camisinha”, e pela crença de que a mulher negra é promíscua, o que é consequência da objetificação de seu corpo e da hipersexualização, impostas por uma sociedade racista.“Ao ser discriminada, essa mulher pode desistir de se tratar”, lamenta. Thiago salienta que, mesmo com acesso ao tratamento, a mulher negra fica prejudicada diante da situação de vulnerabilidade social, por exemplo, por viver em situação de insegurança alimentar e, ao mesmo tempo, ter que tomar os antirretrovirais. “É importante lembrar que os medicamentos dão efeito colateral”, diz, destacando que a morte de mulheres negras em decorrência do HIV pode aumentar diante do contexto de aumento do desemprego e da miséria, impostos pela crise econômica e pela pandemia da Covid-19.A situação de vulnerabilidade social inviabiliza, inclusive, o deslocamento dessa mulher para os equipamentos de saúde, diante da impossibilidade da falta de recursos financeiros para pagar passagem, por exemplo. O local de moradia, destaca Thiago, torna-se um agravante também por normalmente ser longe dos lugares onde o tratamento é feito.Dados em todo o BrasilEm todo o Brasil, segundo o Observatório MulherES, em 2019 morreram 3,5 mil mulheres em decorrência do HIV, sendo 2,1 mil negras e 1,3 não negras. Desde 2010, o total foi de 40,7 mil óbitos. Desse total, 22,9 mil foram de mulheres negras e 17,9 mil de não negras.

Fonte: Século Diário