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Luedji Luna rejeita o rótulo de diva: “Danço pagodão, vou à praia, bebo”

Genilson Coutinho,
09/03/2020 | 15h03
Luedji Luna: Vestido Gilda Midani (Foto: Alberto Thomaz)

QG

“Hummm. Outono na Bahia. Chuva no final da tarde e aquele cheiro de terra e de mato molhados.” Essa é a autodefinição de Luedji Luna caso fosse uma daquelas sensações de se ter. Mas fora desse sonho de sentidos e memórias resgatadas, estamos mesmo diante de uma sensação que trouxe novo rumo a um mercado ávido por representatividade e propósito(s).

A soteropolitana conquistou o globo com seu début sonoro Um Corpo no Mundo (de 2017) e, dois anos depois, com o EP Mundo. “A ideia de dialogar com outros países sempre foi uma intenção”, entrega ela, que fez a primeira turnê internacional na Europa e nos Estados Unidos e acaba de retornar do Quênia onde gravou as bases de seu próximo álbum.

Entre a musicalidade da África-mãe, as misturas da afrobaianidade e as rimas do rap paulistano que tem como experiências sonoras, cruzou com outros nomes da sua geração que também trilharam caminhos nunca dantes cantados – como Xênia França, Liniker, Letrux e Maria Gadú – e mantêm o controle de suas próprias falas e carreiras. Unidas, essas cinco estão agora no grito coletivo Acorda Amor, idealizado por Roberta Martinelli e Décio 7 (do grupo Bixiga 70), que acaba de ser lançado como um hinário de resistência – o título é uma versão da canção de Chico Buarque de 1973. “Tratamos de amor como um contraponto ao ódio. Queríamos usar este sentimento como uma arma”, explica.

Luedji Luna, que carrega o nome da primeira rainha africana da etnia Lunda – escolhido por seus pais, militantes do Movimento Negro – e o segundo retirado de um livro de bruxaria que lia na adolescência, surge como uma voz para os invisibilizados pelo sistema e ainda como uma diva, título-elogio que não necessariamente carrega no coração. “Quero muito manter minha humanidade. O racismo já me desumaniza de partida e este lugar da deusa simplesmente não me contempla. Danço pagodão, vou à praia, bebo”, dispara a antidiva, a qual prefere ser chamada para uma cerveja do que ser venerada à distância.

Consciente de seus papéis, um encontro com a artista é como um ar de consciência – ela tem “ventania dentro”, como já compôs. Seus versos politizados e seu timbre suave intelectualizado alertam sobre o genocídio da população negra, a sexualização dos corpos femininos e a escravidão, ou seja, apontam para um Brasil que repele os que aqui vivem. “Este país parece que não quer a gente. E é o único que temos para nos agarrar. Deveria ser uma política pública este exame de reconstituição das identidades negras. É uma dívida histórica”, acredita.

Formada em direito – mas sem exercer – fez da arte a sua legítima defesa. “A primeira é a da minha própria existência – quero e tenho o direito de ser ouvida. A segunda é em relação a este mundo que me atravessa, coberto por opressões, racismo, sexismos e LGBTQIAfobia”, argumenta a compositora, que tomou os palcos dos festivais apenas aos 27 anos. “Porque as referências que tinha de cantoras negras sempre estavam no ostracismo ou em um lugar de menor prestígio com relação às brancas – como a Margareth Menezes que foi ofuscada pela Daniela Mercury. Minha grande crise era: ‘Você pode ser o que quiser e escolheu ser vulnerável?’ Não fui educada para viver na miserabilidade. Mereço tanta dignidade quanto um funcionário público”, recorre com uma calma avassaladora de quem domina a própria trajetória com a mesma tranquilidade que mantém quando recorda sua origem – “sinto falta do dendê!” – ou confirma a próxima incursão musical que vai versar sobre amores não representados. “São poucas as imagens de mulher preta se beijando ou fazendo sexo – até mesmo lésbico. Menos ainda se pensarmos sobre carinho e família. A sociedade negligencia este afeto. Então vai ser uma mulher negra falando sobre desejo. Homem? Mulher? Homem e mulher? É romântico? É sexual? Ou tudo junto?”

Styling: Gabriel Feriani. Grooming: Welida Souza. Produtor de moda: Gustavo Souza. Assistente de moda: Cléber Chiliano.