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Livro releva as agruras de um dos primeiros transexuais brasileiros

Genilson Coutinho,
10/11/2011 | 09h11

Joana nasceu numa família de classe média do Rio de Janeiro na década de 1950. Apesar de ser uma menina bonita, no fundo, odiava os vestidos, as bonecas e os enfeites de cabelo. À medida que desenvolvia o corpo feminino, ganhava curvas e o volume nos seios aumentava, mas detestava o corpo em que habitava. Joana guardava um segredo muito difícil de ser revelado. Bem mais dolorido do que a dor física que ela mesma infligia em si na tentativa vazia de impedir o crescimento das mamas. Joana era uma mulher palpável. Enquanto João era uma abstração que precisava ser escondida. “Sempre que me tratavam no feminino, eu corrigia a frase mentalmente”, recorda João W. Nery, um dos primeiros transexuais brasileiros e que acaba de publicar o segundo livro de sua autoria, Viagem solitária.

Nele, João, que um dia se chamou Joana, narra com franqueza todas as dificuldades por que passou na vida até se transformar no que realmente é: um homem. “Não é um desabafo catártico. Eu escrevi o livro com a finalidade de esclarecer ao mundo como é a vida de um trans-homem. Não é só para os transexuais. É para todo mundo pensar, modificar conceitos. Enfim, fazer refletir. Não escondi nada. Eu sou um trans-homem há 30 anos e não preciso mais desse comportamento. Embora, não invalide a emoção toda do que eu escrevi”, afirma, aos 61 anos, com a segurança da maturidade. Nem sempre João foi tão seguro assim. No livro de memórias, ele narra a liberdade apredida com os ensinamentos do professor Darcy Ribeiro (amigo pessoal de seu pai) como uma das ajudas para se aceitar como o ser humano que era.

Todo transexual que consegue fazer a cirurgia de troca de sexo nasce de novo. No caso de Nery, o renascimento aconteceu numa clínica particular de São Paulo em 1977. Na cirurgia feita clandestinamente, ele retirou os seios, o útero e os ovários. Joana dava aulas em faculdades de psicologia e fazia mestrado quando perdeu todos os documentos e com eles todo o currículo vitae que havia construído quando era mulher.

Precisou se virar para sobreviver. Foi taxista, pintor de paredes, lavrador e massagista. A situação financeira se agravou quando se transformou em pai de um menino gestado pela companheira da época. “O meu primeiro livro foi iniciado logo após a minha primeira cirurgia. Eu escrevi enquanto me recuperava. Agora eu realmente saio do armário. Não podia aparecer em jornais naquela época. Tudo era proibido em plena ditadura. As cirurgias também”, recorda sobre o primeiro livro Erro de pessoa, João ou Joana?, publicado em 1984.

Regras de aceitação
Apesar de reconhecer avanços sociais em relação aos representantes do terceiro sexo, João novamente bate de frente com o preconceito existente na sociedade e as regras de aceitação que ela impõe. “Por exemplo, no caso dos testes para os trans-homens são usados os critérios do homem que senta de perna aberta, fala palavrão e cospe na rua. Eu gosto de manter características que fazem parte da cultura feminina como a sensibilidade e a ternura. Na hora de fazer os testes, parece que é preciso falar grosso para ser aceito como um homem. Não acho que não tenha de existir o laudo, mas sou contra a postura de que não podemos ser considerados seres humanos normais”, defende João.
“Se uma mulher heterossexual quer fazer a cirurgia para aumentar as mamas, ela não precisa de laudo nenhum. O homem que quer fazer a cirurgia de aumento da genitália também não é tratado como um doente mental. Quando estamos no processo para fazer a cirurgia, somos obrigados a provar que não somos mentalmente desequilibrados. É um absurdo”, defende Nery. A cirurgia de trans-homens são experimentais e consideradas mais complexas do que as das transmulheres. Muitos não terminam todas as cirurgias porque o resultado ainda é muito precário e a possibilidade de perda do prazer sexual é enorme.

João admite que a visibilidade dos transgêneros aumentou nos últimos anos. A história da supermodelo brasileira Lea T., que aguarda a autorização judicial para fazer a cirurgia na Itália, país onde mora desde criança, também ganhou destaque nos jornais brasileiros recentemente. Nascido Leandro, Lea é filha do ex-jogador de futebol brasileiro Toninho Cerezo e sofreu duplamente. Primeiro com a estranheza que os transexuais suportam ao mudar de sexo, mas também com a reverberação que o assuntou ganhou por causa do pai famoso. “Eu rezava para ser um homem homossexual. Nós transexuais somos tratados como o lixo do mundo”, desabafou a modelo em entrevista para a apresentadora norte-americana de tevê, Oprah Winfrey.

Trechos do livro
“Viver dois gêneros numa vida só era enlouquecedor. Cansava-me de estar sempre pulando de um lado para outro. Uma hora, engrossava a voz, em outra era obrigado a afiná-la; ou me viam como um menino de 16 anos e me barravam em qualquer ambiente impróprio para menores, ou que me viam como uma mulher já passando da hora de casar.”

“As portas eram meias-portas e não tinham trancas. Cubículos nauseantes de sujeira. Fiquei pensando como faria para segurar a porta e ao mesmo tempo as calças, a fim de não molhá-las no chão repugnante. Além do mais, não podia sentar naquela tampa nem ficar à mercê de que alguém inadvertidamente empurrasse a porta e me visse desarmado, naquela posição.”

“O dono do quiosque onde nos sentamos e pedimos cerveja deve ter ficado com a pulga atrás da orelha com aquele grupo de amigos, com cicatrizes no peito e na barriga. Acho que parecíamos veteranos de alguma guerra, o que de certa forma éramos de verdade.”
Saiba mais
Transtorno de gênero
Durante muitos anos, o transexualismo foi tratado como algum tipo de esquizofrenia. Hoje em dia é considerado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um transtorno de gênero. De maneira simplista, usa-se a explicação do indivíduo que nasceu no corpo errado. Por exemplo, uma mulher que se considera homem ou um homem que se considera mulher. Muitos transexuais tentam extirpar os órgãos sexuais de maneira precária, em casa. Muitos morrem por complicações no processo ou se suicidam. No Brasil, a cirurgia de mudança de sexo é feita desde 1997, pelo SUS, mediante laudo de uma equipe médica reunindo sexólogos, psicológos e cirurgiões comprovando o transexualismo. Porém, a medida ainda não autoriza a troca de nome na documentação civil. A França foi o primeiro país a entender que transexualidade não é uma patologia. Desde 2010, os indivíduos deixaram de ser considerados doentes mentais naquele país.
Viagem solitária
Autobiografia de João W. Nery. Editora Leya Brasil. Preço sugerido: R$ 44,90

Fonte: Correio Brasiliense