Hospital das Clínicas, em SP, será primeiro a tratar menor transexual com hormônio

Genilson Coutinho,
15/04/2013 | 11h04

A jovem Alessandra, de Presidente Prudente, fez o acompanhamento no CRT/SP e aguarda na fila do SUS para fazer a cirurgia de transgenitalização (Foto: Paulo Pepe/RBA)


O Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo será o primeiro no país a implementar tratamento hormonal a adolescentes transgêneros. Atualmente, a hormonoterapia só é concedida pela rede pública de saúde a maiores de 18 anos, mas um estudo francês feito em 2010, envolvendo 70 adolescentes com o chamado Transtorno de Identidade de Gênero (TIG), revelou que todos mantinham o transtorno na idade adulta. Com base nesse e em outros estudos médicos internacionais, o Conselho Federal de Medicina (CFM) passou, desde março, a recomendar a aplicação do novo método a partir dos 12 anos, quando começam os sinais da puberdade.
“Esse tratamento inicial bloquearia justamente a puberdade de gênero de nascimento. A partir dos 16 anos os hormônios que induzem à aparição de características do gênero desejado podem começar a serem tomados pelos jovens”, explica a diretora do Centro de Referência e Treinamento (CRT) DST/Aids -SP, Maria Clara Gianna.
O CRT é uma unidade de coordenação do Programa Estadual para Prevenção, Controle, Diagnóstico e Tratamento de DST e Aids no Estado de São Paulo, ligado à Secretaria Estadual de Saúde. Em 2010, dentro do âmbito da CRT foi criado o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais, serviço que realiza procedimentos médicos a esta população, mas sempre para adultos, como explica Maria Clara. O ambulatório conta com cerca de 15 profissionais e 1.400 pessoas em atendimento. “Não atendemos a adolescentes, estes encaminhamos para o ambulatório especializado do HC.”
O Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) pertence ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e funciona desde 2010 atendendo a jovens transgêneros, mas sem concessão de hormonoterapia. O atendimento é voltado para acompanhamentos e orientações psicoterápicas desenvolvidas por uma equipe de 13 profissionais de saúde capacitados. No momento, são atendidos cerca de 80 jovens.
“Para nós esse parecer foi fantástico, facilitará muito o trabalho que desenvolvemos com os adolescentes transexuais. O cenário se ampliou muito”, diz o psiquiatra e coordenador do Amtigos, Alexandre Saadeh. De acordo com ele, os protocolos para que jovens possam receber a hormonoterapia estão em andamento junto ao serviço de endocrinologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas. “Em junho já estaremos atendendo a estes adolescentes.”
O parecer do CFM é uma avaliação técnica em resposta a uma consulta feita pela Defensoria Pública de São Paulo, em janeiro do ano passado, sobre a possibilidade de adolescentes realizarem a hormonoterapia. A coordenadora do Núcleo de Combate à Discriminação – responsável pela iniciativa –, Vanessa Alves, explica que pais de jovens transexuais menores de idade procuraram a defensoria alegando que seus filhos não conseguem este tratamento na rede pública estadual de Saúde.
“Quando se identificam com o gênero oposto e não conseguem tratamento, acabam procurando opções clandestinas para fazer a mudança no corpo. Na adolescência, principalmente, há um grande sofrimento psicológico e social destes adolescentes porque é o momento em que aparecem os sinais da puberdade”, explicou. Ela afirma esperar que, com o parecer do CFM, o serviço passe a ser oferecido pela rede pública de saúde. “Fizemos essa consulta para que ficasse esclarecida essa possibilidade.”

O tratamento hormonal em jovens transexuais, pelo HC, será uma parceria entre o CRT, o Amtigos e a ONG Grupos de Pais de Homossexuais (GPH). “O atendimento está sendo discutido neste momento. O parecer vem num ótimo momento. Consideramos fundamental que esses processos possam ocorrer e possam ter a atenção adequada”, explicou a diretora do CRT.
Maria Clara afirma que a proposta é que este tipo de tratamento se inicie no HC e depois seja estendido a todas as unidades estaduais que ofereçam atendimento a transexuais. “A ideia é iniciar o processo, observando os novos serviços, para que o estado se organize e capacite os profissionais para isso.”
Desde 2008, como instituído pela Portaria 1.707, do Ministério da Saúde (MS), o Sistema Único de Saúde (SUS) conta com o “Processo Transexualizador”, que prevê a instalação de atendimento e profissionais capacitados para atender a transexuais por meio do atendimento psiquiátrico, médico endocrinológico – hormonal – e cirurgicamente. Apesar de não especificar a idade dos transexuais que podem usufruir dos tratamentos, as redes do SUS, atualmente, não oferecem tratamento hormonal a menores de 18 anos.
O coordenador do Amtigos afirma que está em andamento a formulação de uma nova portaria do MS, que especificará a possibilidade de jovens serem atendidos pelo Processo Transexualizador. “Já participei de uma reunião com o Ministério da Saúde para formular a portaria, que deve ser publicada no meio do ano”, adiantou Saadeh.
O parecer do CFM não é normativo, isto é, não institui como norma suas observações técnicas, que são consideradas apenas como sugestões às entidades e redes de saúde pública. No entanto, historicamente, o poder público leva em consideração os pareceres na orientação da política de saúde. Por isso, o parecer publicado em março foi encarado como “marco” pela diretoria do CRT.
Purpurina
A “provocação” feita à defensoria para que entrasse com o pedido de consulta ao CFM foi feita pelo Projeto Purpurina. “No Brasil, os transexuais têm de chegar aos 18 pra começar o tratamento hormonal, quando as características de gênero secundárias já apareceram, como a barba, a voz grossa, as meninas já estão menstruando”, comenta a diretora da ONG Grupo de Pais de Homossexuais, Edith Modesto.
“Tivemos em nosso grupo tentativas de suicídio. A dor só aumenta, porque já há um processo de autoaceitação e aceitação da família também, os pais dificilmente aceitam facilmente filhos transexuais, eles não são preparados para isso.”
Poucas pessoas entendem o que é a transexualidade. “Agora mais estudos e reportagens estão aparecendo sobre o tema. É muito delicado, e é importante diferenciar o transexualismo do travestismo e do androgenismo.”

O transexual é aquele que não se sente pertencente ao seu gênero biológico, quando não se reconhece como homem ou como mulher, explica Edith. “Já vi um caso em que um menino de quatro anos falou para a mãe: ‘você sabia que eu era mulher, porque me fez deste jeito?’”.
Já o travesti é aquele que se reconhece como homem ou mulher, mas que sente prazer ao se travestir do sexo oposto. “E as meninas masculinizadas e os meninos afeminados são os andrógenos”, explica.
Atualmente, o número de participantes do GPH gira em torno de 200 pessoas. O número de transexuais é menor, são cerca de 10, representando 5% dos participantes.
Mal sem gênero
Os efeitos do tratamento hormonal inadequado são inúmeros. Sem encontrar a hormonoterapia em unidades de saúde adequadas, os jovens biologicamente homens utilizam pílulas anticoncepcionais, por conter estrogênio, hormônio feminino, e as jovens, biologicamente mulheres, usam testosterona que muitas vezes funcionam como as “bombas” de usuários de academia.
“Geralmente, eles fazem uso de hormônio por conta própria, é difícil encontrar um destes jovens sem uso de hormônio. Autorizando-se a gente a trabalhar mais cedo, temos o hormônio mais indicado, tanto em termos de tipo quanto em quantidade”, afirma uma das diretoras do Departamento de Endocrinologia Feminina e Andrologia da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), Amanda Athayde.
“Os meninos usam muitas pílulas por dia, quatro ou cinco, para fazer um efeito mais rápido. Eles não recebem tratamento adequado no sentido de diminuir o hormônio genético deles, que é o masculino. Ele mudam de hormônio, e os resultados são maléficos sobre o fígado, há efeito de trombose também”, diz Amanda.
A testosterona não é vendida sem receita médica ou indicação, o que faz com que os hormônios ingeridos pelas meninas sejam mais perigosos ainda. “ Usam testosterona vendida pela internet, de origem muitas vezes animal.” Os efeitos colaterais são doenças no fígado, alteração do colesterol e no mecanismo de coagulação do sangue, o que causa a trombose.
Histórico
Em 1997 a Resolução 1.482 do CFM autorizou o tratamento e a cirurgia de transgenitalização, ainda que de maneira experimental, para essa população. Segundo o Amtigos, acreditava-se que, na época, existiam no Brasil 1.500 transexuais operados e 1.200 aguardando autorização.
Essa resolução foi revista em 2002 e novamente em 2010 pelo CFM, que, a partir de então, estabeleceu que as cirurgias de transgenitalização para transexuais masculinos (homem/mulher) e femininos (mulher/homem) podem ser realizadas por qualquer equipe médica multidisciplinar.

Ainda segundo dados do Amtigos, considera-se que um entre 30.000 homens e uma entre 100.000 mulheres sejam transexuais.
Fonte: Brasil Atual