Saúde

Homens trans enfrentam preconceito no acesso a cuidados ginecológicos

Redação,
30/12/2023 | 11h12

Na sala de espera da clínica ginecológica, dezenas de mulheres aguardam atendimento médico. De repente um nome masculino é chamado e como em um movimento sincronizado, todas passam a olhar para aquele paciente – que apesar dos esforços não consegue passar despercebido no ambiente dominado por mulheres.

O cenário que causa estranheza é o vivenciado pelo analista de marketing Mateus Martins de França, de 27 anos, todas às vezes que ele precisa ir ao ginecologista. Ele é um homem transexual, ou seja, que nasceu com sistema reprodutor feminino, mas tem uma identidade de gênero masculina.

“O constrangimento começa na recepção porque você precisa explicar o porquê de você estar indo para aquela clínica. Eu sempre tento ir à consulta acompanhado por uma mulher, mas quando chamam meu o nome surgem os olhares. Depois, quando você chega ao médico é mais um constrangimento porque a maioria simplesmente diz que não sabe ou não entende sobre nosso corpo e negam esse atendimento”, relata.

Mateus faz tratamento hormonal de transição de gênero há oito anos e desde então lida com as transformações no corpo. E, assim como todas as pessoas, precisa ter cuidados com sua saúde.

“O uso dos hormônios mexe bastante com o nosso corpo e com a região íntima; por isso, precisa de uma atenção diferente e um cuidado a mais. Mas não são todos os profissionais que querem lidar com a população trans e fazer esse acompanhamento. Por oito anos busquei profissionais que entendessem as minhas necessidades e se dispusessem a me atender. Ainda há muito preconceito”, acrescenta Mateus.

O ginecologista Sérgio Henrique Pires Okano, professor da USP e membro do departamento científico LGBTQIAP+ da Associação Brasileira de Estudos em Medicina e Saúde Sexual (Abemss) explica que apesar das mudanças, o corpo dos homens trans possuem os órgãos reprodutores femininos e que o acompanhamento médico para essa população deve ser contínuo, assim como o acompanhamento das mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero atribuído no nascimento).

“A principal importância é o esclarecimento de que aquele corpo pode possuir vulva, vagina, útero e mama. E por conta desses órgãos, é importante que a pessoa esteja inserida dentro do acompanhamento ginecológico, porque o paciente pode necessitar de exame físico mamário, rastreio com mamografia, coleta de Papanicolau, quando possível, e até investigação de outras condições clínicas que estão associadas a esses órgãos”, explica o ginecologista.

Outro fator que deve ser considerado é a ingestão de hormônios, como a testosterona, que não só engrossam a voz e fazem os pelos começar a crescer, mas também causam mudanças significativas na região íntima.

“A testosterona pode gerar sintomas de atrofia genital para esses pacientes. Se isso acontece, é possível trabalhar tratamentos locais com o uso de estrogênio vaginal, que não é absorvido e não atrapalha a transição, ou o uso de outras tecnologias, como, por exemplo, o laser, que pode ajudar nas questões de ressecamento vaginal”, explica Okano.

O diálogo entre profissional e paciente sobre a questão reprodutiva deve ser aberto e tem grande importância. “É necessário discutir questão contraceptiva para aqueles homens trans que têm risco de uma gestação não planejada. É importante frisar que o uso de contracepção não afeta a transição hormonal”, acrescenta o professor.

“Assim como prevenir uma gestação não planejada, também é importante discutir o desejo gestacional dessa pessoa e a vontade de ter filhos. É possível abordar assuntos como adoção ou uma reprodução assistida. Existe uma negligência com a discussão de saúde reprodutiva no sentido de planejamento familiar para as pessoas”, detalha o ginecologista.

O despreparo dos profissionais, o preconceito e o medo de passar por situações constrangedoras como as enfrentadas por Mateus e pela maioria dos homens trans, fazem com que esse público deixe a saúde ginecológica de lado. Situação, que segundo o ginecologista, pode ser um grande problema.

“Além de cuidar da saúde ginecológica, durante a consulta, nós devemos orientar os cuidados da saúde como um todo. Como o cuidado com a alimentação, com vícios, reforçar os cuidados com a vacinação, com o uso de preservativos e até mesmo cuidados comportamentais, já que essas pessoas são mais vulneráveis à violência física por conta do preconceito. O profissional tem que cuidar e entender o paciente na totalidade”, enfatiza Okano.

“Infelizmente temos profissionais que não querem atender essa população e não há outra justificativa a não ser o preconceito. Porque durante a faculdade, o estudo é do corpo humano e todos os órgãos que a pessoa trans possui o profissional de saúde conhece na faculdade. Ele pode não saber as particularidades do atendimento, como acolher essa população, mas desconhecimento sobre o corpo humano não tem”, conclui o profissional.

Fonte: CNN Brasil