HÁ POUCO MAIS DE UM ANO: FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS EM FACE DA DECISÃO DO STF

Genilson Coutinho,
14/05/2012 | 12h05

Há pouco mais de um ano (dias 4 e 5 de maio de 2011), o Supremo Tribunal Federal brasileiro reconheceu, pela unanimidade de 10 ministros votantes, que a união homossexual pode ser considerada entidade familiar no Brasil, em plena igualdade de direitos com relação às vinculações heterossexuais estáveis (que o legislador denominou de união estável). Assim, desde que preenchidos determinados requisitos legais – consubstanciados na convivência factual pública (notória, ostensiva), contínua, duradoura e com perspectiva de vida em comum -, casais de pessoas do mesmo sexo formam uniões estáveis aptas ao usufruto de todos os direitos e ao exercício de deveres decorrentes do mesmo sentimento que une heterossexuais: o amor.

O julgamento do STF se deu em virtude da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132/RJ e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277. A primeira foi apresentada em 2008 tendo como arguente o Governador do Estado do Rio de Janeiro (Sérgio Cabral), visando especialmente a que servidores estaduais homossexuais, conviventes em relações estáveis, também pudessem usufruir dos benefícios (a exemplo de licença e previdência) concedidos aos servidores unidos por laços heterossexuais. A segunda (interposta originalmente como ADPF em 2009) teve como arguente a Procuradoria Geral da República. Reclassificada como ADI pelo STF (conforme pedido alternativo da própria PGR, aceito pelo Supremo), objetivou, em suma, o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre “homem e mulher” (para que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis alcançassem os companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo).

A base jurisprudencial que encaminhou os ministros do Supremo a esta louvável e histórica decisão deve-se, em especial, à coragem de diversos(as) juízes(as) singulares e desembargadores(as) de alguns tribunais de justiça brasileiros, que, desde o fim da década de 90 (do século XX), vinham reconhecendo, gradualmente, o afeto como o lastro de existência e de sustentação das uniões entre pessoas do mesmo sexo; motivo pelo qual as ações afetas a tais relacionamentos, cada vez mais, passaram a tramitar nas Varas de Família – que são, de fato, as competentes para a apreciação de tais demandas. E a esteira jurídico-teórica do reconhecimento familiar das uniões homossexuais, nestes julgados, foi a analogia (art. 4ª da LICC; art. 126 do CPC) com o instituto da união estável que, à luz da principiologia constitucional – especialmente da dignidade humana e da igualdade -, presta-se a estender os mesmos efeitos jurídicos às relações afetivas entre pessoas de sexo idêntico. De fato, como bem ficou pontuado por alguns ministros do STF em seus votos, não havendo, por ora, lei que regulamente tais relações (homoafetivas) no país, a lacuna pode e deve ser suprida – para que o Judiciário não chancele uma série de injustiças.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, em matéria de reconhecimento de direito previdenciário e de assistência médica, já vinha sedimentando esta base jurisprudencial, como são marcos os seguintes julgados: “A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica”. (REsp 238.715/RS, Rel.Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 07.03.2006, DJ 02.10.2006, p. 263) / “Diante do § 3º do art. 16 da Lei n. 8.213/91, verifica-se que o que o legislador pretendeu foi, em verdade, ali, gizar o conceito de entidade familiar, a partir do modelo da união estável, com vista ao direito previdenciário, sem exclusão, porém, da relação homoafetiva”. (REsp 395.904/RS, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, SEXTA TURMA, julgado em 13.12.2005, DJ 06.02.2006, p. 365) Em setembro de 2008, este mesmo Tribunal, através de sua Quarta Turma, por 3 votos a 2, abriu precedente para que as ações de reconhecimento de união estável entre homossexuais não fossem obstadas sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido.

Passado, aproximadamente, um ano desta decisão histórica, já se podem perceber inúmeros desdobramentos positivos, a exemplo da conversão de uniões estáveis homossexuais em casamento e da celebração direta desse em diversos estados brasileiros (objeto-tema da minha atual Tese de Doutoramento). Pela razão da importância de tal julgado, decidi congregar alguns pesquisadores brasileiros da área jurídica (a exemplo da amiga, grande defensora e jurista, Maria Berenice Dias), para comentarmos os conteúdos dos votos dos ministros – o que acabou gerando o livro (coordenado por mim e lançado esta semana pela Editora Juruá) intitulado:União Estável entre Homossexuais – Comentários à Decisão do STF face à ADI 4.277/09 e à ADPF 132/08.

 

Frente à decisão do Supremo ora em comento, caem por terra os argumentos fundamentalistas e preconceituosos de que a união homoafetiva não forma família no Brasil. Se alguns evangélicos ou católicos não reconhecem o amor entre pessoas do mesmo sexo (e são contrários a todas as demandas homoafetivas), o Estado brasileiro não tem nada a ver com isto, porque é LAICO e, em suas decisões, somente deve admitir a prova científica. O Congresso Nacional, que ainda se mantém silencioso frente aos diversos projetos relacionados à vasta comunidade LGBT, recebeu desta decisão do STF uma verdadeira lição de cidadania, especialmente porque se trata de um convite a legislar sobre esta e outras matérias que tocam diretamente na dignidade de milhões de cidadãos(ãs) brasileiros(as) discriminados(as). Como bem acentuou o Ministro Carlos Ayres Britto, se os homossexuais ganham com esta decisão, ninguém perde. Não houve diminuição de direitos para absolutamente ninguém. Ao perceber a reação negativa de alguns(mas) “religiosos(as)”, senti-me com as forças renovadas para prosseguir a luta pela plena cidadania LGBT, porque as trevas da ignorância ainda insistem em se impor. É por conta da pressão deles(as), que alguns legisladores, temerosos de perderem votos, calam-se. Felizmente, o apelo fundamentalista não cegou o STF, cuja lição só fez fortalecer o Estado Democrático de Direito, pois a sua decisão é vinculante, válida para a sociedade inteira e orientará todo o Poder Judiciário para a mesma direção interpretativa. Ou seja: os(as) magistrados(as) não mais poderão alegar impossibilidade do pedido ou negar o caráter de união estável aos relacionamentos sólidos entre homossexuais para diversos fins, deveres e direitos previstos nas legislações constitucional e infra-constitucional – a exemplo da adoção de crianças e/ou adolescentes, da inclusão em planos de saúde, da previdência, da associação na condição de dependente em algumas entidades (como clubes e sociedades), do dever de alimentos em caso de necessidade, da divisão de bens adquiridos na constância da união, dos direitos à herança, ao usufruto dos bens do falecido e ao acompanhamento do(a) companheiro(a) em instituições médico-hospitalares, etc.

Ao prever, no caput do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, o constituinte, rompendo com uma história de verdadeira exclusão constitucional, pôs, pela primeira vez sob a tutela estatal, a entidade familiar, sem dizer, necessariamente, que tipo de família é merecedor de proteção. Se até a Constituição de 1967, a única família albergada pela proteção estatal era a selada pelo casamento, a partir de Lei Maior de 1988, esta realidade foi modificada. Assim, o que delineia, hoje, o que é uma base familiar é a convivência afetiva das pessoas, que deve gerar efeitos na órbita do Direito das Famílias, para além deste ou daquele posicionamento ideológico, sócio-cultural específico ou religioso. É a perspectiva de vida em comum, aliada à convivência respeitosa e afetivamente estável que diferenciam a família dos demais agrupamentos humanos. Assim, formado por seres humanos que se amam, para além de qualquer restrição discriminatória, determinado grupo familiar já está sob a chancela protetora da nova ordem constitucional, a partir da sistemática do referido artigo 226, em sintonia com a base principiológica da Constituição Federal, que tem na dignidade da pessoa humana o seu eixo central de sustentação – conforme concluiu, por unanimidade, o STF.

O que se descortina em matéria de reconhecimento do AMOR em face do Poder Judiciário brasileiro, a partir desta decisão do Supremo, aponta a direção mais bonita: a que independe de qualquer condição para que tal sentimento seja, efetivamente, atestado em toda sua inteireza e nas implicações que traz na vida relacional-familiar das pessoas – para além de cor, sexo, orientação afetivo-sexual, nuances de gênero… Conjugar, no exercício da existência concreta, o verbo AMAR persistirá justificando a formação de uma família, qualquer que seja essa. Realmente, para enxergar a família, é preciso enxergar o amor. Se não se identifica afeto, não se vê família. Por isso, continuo ratificando e ecoando o cancioneiro: “Eu vejo a vida melhor no futuro. Eu vejo isso por cima do muro de hipocrisia que insiste em nos rodear”.
Enézio de Deus – Doutorando e Mestre em Família na Sociedade Contemporânea (UCSAL); Advogado-membro do IBDFAM; Professor de Direitos Humanos; Autor de livros e artigos jurídicos.eneziodedeus@hotmail.com