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Entrevista: a voz negra e trans de Marcelo Caetano

Genilson Coutinho,
23/04/2015 | 12h04

caetano

Famoso por seus textos divulgados nas redes sociais, em que aborda suas vivências de homem negro e transexual na sociedade, o escritor e ativista Marcelo Caetano chama atenção, entre outras coisas, para a importância da militância, muitas vezes praticada pelo ato cotidiano de resistir. Confira um pouco das ideias de Caetano a respeito das questões raciais e de gênero nesta versão editada da entrevista concedida à Fórum.

 Fórum – O que emergiu primeiro em sua identidade: a compreensão a respeito das questões de gênero ou a compreensão sobre as questões raciais no Brasil?

Marcelo Caetano – A questão racial sempre esteve presente, afinal de contas, eu sempre fui negro. Cresci em uma região periférica de Santos​, cresci na rua e, junto com as outras crianças, fazia coisas como guardar carros e engraxar sapatos. Nessa época, não tinha noção alguma sobre questões de gênero; hoje, olhando pra trás, consigo identificar vários processos e sentimentos que apontavam para a questão trans, mas eles simplesmente não tinham nome e eu só seguia a vida normalmente.

A primeira vez que ouvi falar em transexualidade, tinha 18 ou 19 anos. Foi numa aula na faculdade (eu fazia Direito na UFPR) e, de repente, tudo meio que fez sentido. Fui buscar mais informações e alguns meses depois decidi que era isso mesmo que queria. Mas, veja, eu já tinha 20 anos quando comecei o processo de transição. Então, por 20 anos da minha vida fui visto como uma menina e mulher negra e isso teve consequências muito práticas no meu cotidiano, especialmente na infância; a rua pode ser um ambiente bastante difícil para as meninas negras, há exposição a diversos tipos de violência.

Fórum – Como foi o seu processo de compreensão e identificação enquanto homem trans e negro? São experiências que andaram separadas?

 Caetano – Por algum tempo, fiquei bastante focado ​em pensar só na questão trans; era um mundo novo que se abria e eu tinha mesmo um monte de coisas para descobrir, pensar e resolver. Mas assim que comecei a ser reconhecido como homem em espaços que iam para além das minhas relações pessoais (no ônibus, na padaria), a questão racial foi se tornando inevitável. Acho que dois momentos foram cruciais nesse processo: quando eu ganhei barba e quando deixei o cabelo crescer. A barba se mostrou como o signo que não deixa dúvidas, uma pessoa de barba é sempre um homem! Então, quando comecei a ter barba, em nenhum lugar as pessoas erravam os pronomes ou indagavam sobre minha identidade de gênero (mas lógico que quando se tem algum documento a ser apresentado, o problema se torna outro).

O processo do cabelo também foi muito importante. A primeira coisa que fiz ao começar a transição foi cortar o cabelo. Eu tinha um cabelo realmente enorme e, para mim, era bastante simbólico me livrar dele, ter um cabelo curto era uma marca importante da minha masculinidade. Mas resolvi deixar o cabelo crescer e comecei a usar black, o que se tornou uma marca da minha negritude. Temporalmente, esses processos (a barba e o cabelo) aconteceram meio que juntos e eu pude perceber a mudança ao andar na rua: as pessoas atravessam [a rua], os táxis não param, as mães trazem as crianças para mais perto.

Não tive como me tornar um homem e, depois, me tornar um homem negro; acho que as duas coisas aconteceram juntas, mas é um processo muito louco mesmo. Uma coisa é me reconhecer enquanto um homem negro (algo que eu fazia desde que me entendi como trans), outra coisa é perceber que todo mundo me reconhece assim, mas que só sou capaz de perceber esse reconhecimento porque passo a ser uma ameaça. Então, ao mesmo tempo em que, para mim, isso é algo que me deixa satisfeito, ser reconhecido como homem, também é algo que me deixa incomodado; afinal, as pessoas agora me veem como um perigo. Antes de ser um homem negro, eu só sabia teoricamente o que era ser um, mas viver na carne é outra experiência.

Fórum – Com relação aos espaços de ativismo, você consegue identificar racismo no movimento trans ou transfobia no movimento negro? Você faz parte de algum movimento organizado?

Caetano – Sem dúvida, há racismo nos espaços trans e transfobia nos espaços negros, pois as duas violências são estruturais e se manifestam em todas as relações sociais. Essa é uma das coisas que me fazem ter certa dificuldade de militar em movimentos organizados. Já passou demais da hora dos movimentos perceberem que há diversos corpos que articulam em si mais do que uma única identidade.

Falta muita autocrítica e um pouco de humildade pra perceberem que precisamos rever nossas pautas e agendas programáticas para dar conta de outros corpos que se apresentam com questões tão legítimas quanto as nossas. Então, quando você é um corpo com múltiplas identidades políticas, é bastante difícil encontrar um espaço que realmente dê conta de tudo aquilo que você carrega, ou mesmo que esteja disposto a fazê-lo. Acho que é por aqui que podemos começar a consertar as coisas, nos dispondo a ouvir os nossos que também são outros.

Fórum – Como tem sido a experiência da militância para você?

Caetano – A militância acabou sendo um caminho meio que inevitável, mas foi também uma escolha. Sempre me vi em locais de fala subalternizados, então não parecia haver muitas opções. Mas foi também uma escolha, porque é um processo exaustivo. Sou abertamente trans, pois esta é também uma identidade política e identifico a importância de se colocar assim no mundo, mas não significa que esteja aberto a discutir com todo mundo a minha vida íntima. E também porque o cenário político anda bastante complicado; é preciso ter muita convicção do que se defende para manter o ânimo.

 

Fórum – Você poderia elaborar a importância de se abordar as questões raciais no movimento trans e as questões de gênero no movimento negro?

Caetano – Raça e gênero são categorias elementares da estrutura social, que precisam ser sempre pensadas, em todos os contextos. Acho que todos os movimentos tendem a centralizar a identidade que os mobiliza, o que é normal. O problema é quando essa centralização serve para operacionalizar o apagamento de outras especificidades. No movimento LGBT, as orientações sexuais e identidades de gênero é que estão em jogo, mas nenhuma dessas coisas pode ser pensada sem considerar a raça, a classe, as capacidades físicas, porque há sujeitos que carregam em seus corpos diversas dessas marcas e sempre ao mesmo tempo, tudo junto e misturado. Eu simplesmente não posso escolher entre ser trans quando estou no movimento LGBT e negro quando estou no movimento negro; não tenho condições de pensar em raça sem pensar em gênero, porque essas duas questões são elementares na minha vida, organizam minha percepção de mundo e estão inscritas em todas as minhas experiências: sou sempre trans e negro. Mas, por diversas vezes, os movimentos tendem a esquecer disso.

 

Fórum – Na sua experiência pessoal, como as situações de transfobia e racismo se relacionam?

Caetano – A transfobia e o racismo estão sempre presentes. Há poucas coisas na nossa sociedade (se é que há alguma) que não estão organizadas a partir da perspectiva cis e da perspectiva branca​, mas muita coisa tem mudado desde que passei a ter um maior reconhecimento da minha identidade masculina. Afinal, ser homem vem com alguns privilégios. Então, no início da transição, o que ocorria eram mais manifestações de transfobia, as piadas, pessoas errando o nome, fazendo graça da minha voz fina ou da minha cara de menino pela ausência de barba.

​Depois, quando passei a ser visto sempre como homem, o racismo se fez mais forte e tornou a violência mais cotidiana. Porém, tenho muita dificuldade de sinalizar em que ordem essas opressões acontecem. Acho que nos lugares em que hoje eu acesso alguns privilégios masculinos, o racismo vem primeiro, pois, diversas vezes, eu sou visto apenas como um homem negro e não como um homem trans negro. Ao mesmo tempo, já sofri agressões físicas que se deram em razão da minha transexualidade, mas que foram fortemente marcadas pelo racismo. O ponto é que, sendo identificado como homem, a transfobia muda bastante as suas práticas e, por isso, a questão da raça parece ficar mais evidente. Mas acaba que racismo e transfobia se retroalimentam, de modo que cada tipo de violência adiciona especificidades ao outro.

Fórum – Como você se posiciona no mundo quanto às suas identidades?

Caetano – É muito difícil se posicionar no mundo quando se carrega diversas identidades. Como já mencionei, apenas um quinto da minha vida foi vivida como um homem; no restante, me identifiquei e fui identificado como uma mulher negra e, ainda, por algum tempo, como uma mulher negra lésbica. Hoje, sou visto como um homem negro, mas as experiências que vivi sendo reconhecido de outra forma não simplesmente se apagaram; elas não deixaram de existir e são cruciais para quem eu sou hoje. Mas preciso identificar meu local de fala atualmente e esse não é um processo simples.

Ainda tenho uma dificuldade grande de discutir e pensar a masculinidade negra, pois essa nunca é pensada fora do padrão cisnormativo e isso muitas vezes me deixa em um vácuo de referências, onde o único ponto de apoio sou eu mesmo. Enquanto homem trans, também não posso me furtar a reconhecer alguns pequenos privilégios que surgem quando minha aparência física denuncia ali apenas mais um homem, mas também não posso permitir que todas as minhas outras vivências sejam apagadas, como se elas não tivessem se dado com este mesmo sujeito que sou eu. Esse privilégio é também bem específico e pontual; afinal, minha identidade trans é uma realidade, ainda que, hoje, pareça menos identificável.
Enfim, gostaria apenas de dizer que se entender enquanto um homem trans negro traz uma série de desafios às minhas práticas cotidianas, mas também um monte de aprendizados e possibilidades de existir no mundo de uma forma revolucionária.

Foto de capa: Arquivo Pessoal
Fonte: Fórum