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‘É contra as mortes por HIV que luto’, diz frade que dá volta ao mundo

Genilson Coutinho,
23/01/2020 | 16h01

O frade capuchinho Marcelo Monti, 41, caminha há mais de 500 dias para dar a volta ao mundo a pé. Seu desejo é conscientizar as pessoas que encontra no caminho sobre os preconceitos e estigmas que envolvem a aids, doença que matou sua irmã. Em homenagem a ela, Monti chama sua jornada “Caminho de Aline”.

A viagem se iniciou em Porto Alegre, em 28 de agosto de 2018. Quando atendeu a reportagem, já havia percorrido 8.781 km e estava próximo de Quito, capital do Equador.

“Por que minha irmã não queria que se falasse sobre esse assunto e por isso acaba não aderindo ao tratamento? Porque ela tinha introjetado que HIV era resultado de más ações, que tinha que esconder. Isso segue tirando vidas”, disse entre barulho de carros, buzinas e com respiração ofegante enquanto caminhava.

Inspirado em São Francisco, fundador da Ordem dos Capuchinhos, o gaúcho vive como “peregrino e forasteiro”, status compartilhado com migrantes venezuelanos com quem cruza pelo caminho. Mesmo sendo da ordem dos jesuítas, o papa Jorge Bergoglio escolheu o nome Francisco em homenagem ao santo capuchinho.

Monti teve infância pobre e vendia bolo na rua para ajudar a família, que migrava constantemente pelo interior do Rio Grande do Sul em busca de melhores condições.

Sou um latino-americano que iniciou uma volta ao mundo a pé, partindo de Porto Alegre, em agosto de 2018. Já são mais de 500 dias na estrada, com mais de 8.781 km percorridos, sempre com o mesmo par de sapatos; até agora apenas precisei trocar o solado três vezes.

Atravessei o Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Peru e estou próximo de Quito, no Equador. Caminho empurrando um carrinho com itens como colchão inflável, roupa e fogareiro.

Quando criança, precisava ajudar minha família. Desde os oito anos, já estava na rua vendendo bolo, livro, coisinhas. Isso fez se desenvolver em mim essa capacidade de me comunicar com desconhecidos, o que me ajuda na experiência que estou vivendo.

O percurso se chama “Caminho de Aline”, por causa da minha irmã, que morreu em decorrência da aids. Lamentavelmente, o caso dela é uma das histórias repetidas da nossa América Latina. Uma menina que desde os primeiros anos sofre violência na família, sofre violência sexual, isso deixa marcas. Essa história se repete no nosso continente. São meninas abusadas, violentadas, que crescem na miséria com autoestima estraçalhada. Essa foi minha irmã.

Venho de uma família muito grande, marcada pela miséria e pelo sofrimento. Migrávamos pelo interior do Rio Grande do Sul na esperança de que a vida melhorasse. Nós acreditávamos que se mudássemos de cidade, a vida mudaria. Mas a vida não mudava. Eu seguia pedindo comida de porta em porta e a minha mãe seguia em trabalhos que a exploravam e a oprimiam.

Tenho que admitir que não gostava de, a cada mês, a cada ano, ter escola diferente, amigos diferentes. Porém, em uma das etapas da formação capuchinha, percebi que poderia ver essas mudanças como algo que me fez tolerante ao diferente, aberto ao novo.

Quando tinha 15 anos, minha mãe foi morar com meu padrasto. Minha irmã acabou indo morar com uma madrinha e eu fiquei sozinho morando na Vila Brasília, em Porto Alegre, vivendo com ajuda dos vizinhos.

Costumo dizer que nesse tempo eu tinha todas as religiões. Qual era a minha religião? Onde havia comida. Se com os evangélicos, no final do culto, havia um sanduíche, ia no culto dos evangélicos. Se no centro espírita havia um lanche, ali estava. O lugar onde mais havia comida era nas religiões de matriz africana. Tenho e tinha muito respeito por essas religiões, que sofrem intolerância, sobretudo hoje.

Uma senhora, que era prostituta, tinha um cliente que era dono de restaurante. Ela pedia comida e levava para mim. “Marcelo, tu não queres ser padre? Os padres têm comida boa, casa, educação, se vestem bem”, ela disse. “Eu quero”, respondi. Mas nem sabia o que era, não tinha nem feito crisma e primeira comunhão. Mas procurei um vizinho seminarista, indicado por ela.

Comecei a participar de missas, das atividades e gostei. Gostei, principalmente, de ser acolhido. A experiência de ser amado e acolhido regenera, cura feridas, desenvolve a autoestima.

Perguntei para uma freira se havia outras maneiras de ser padre, sem ser sozinho na paróquia. Ela disse que sim e me deu o livro “O Francisco que Está em Você”. Quando li, o sentimento foi de que eu era uma pessoa livre. Até então, não me sentia assim. “Quero essa liberdade para mim”, pensei. Entrei para os capuchinhos, onde senti acolhido da minha história, nunca escondi quem era e minhas experiências.

Francisco queria que os frades vivessem como peregrinos e forasteiros. É o que estou passando e o que os venezuelanos estão vivendo, uma experiência marcada pelo desprezo do outro. Estou caminhando por um tema espinhoso. Não é somente sobre a vida de quem tem HIV, mas sobre quem sofre discriminação.

Em Pelotas, quando já havia iniciado a viagem, conversei com uma senhora que vive com o HIV. “Às vezes estou em um baile da terceira idade. Estou dançando com alguém e vou ao banheiro. Quando volto, a pessoa desapareceu. Sabe o que aconteceu? Alguém chegou e contou: ‘Tu estás dançando com alguém que tem aids’”, ela me contou.

Tu consegues te colocar no lugar dessas pessoas? Temos que fazer esse exercício. E o outro que me gera nojo? Que me gera desprezo? Aquele que acho que tem que ser morto e destruído?

Quando minha irmã descobriu que tinha HIV, não queria que ninguém falasse no assunto. Essa é a cultura do silêncio e invisibilidade que a sociedade quer impor. Como se fosse uma coisa feia, errada.

Se tenho câncer, posso chegar na televisão e contar. Posso contar sobre um ataque cardíaco aos amigos. Mas não posso dizer que tenho HIV. Porque aí estarei marcado pelo erro. Porque culturalmente se construiu que, se foi infectado pelo HIV, é porque fiz algo errado.

Por que minha irmã não queria que se falasse sobre esse assunto e por isso acaba não aderindo ao tratamento? Porque ela tinha introjetado que HIV era resultado de más ações, que tinha que esconder. Isso segue tirando vidas.

Há pessoas que seguem morrendo, que seguem não se tratando ou marcadas por complexo de culpa. É contra as mortes por HIV que luto, é contra novos casos.

Ela impôs que não se falasse sobre isso. Eu já tinha informação sobre o tratamento e sobre a transmissão. Porém, aceitei a imposição. Se não tivesse respeitado, talvez ela estivesse viva, se tivesse dito: “Olha, se tu não te tratares, tu vais morrer. A não adesão significa adoecer e adoecer pode te levar à morte”.

Se me perguntar se me arrependo, sim, me arrependo. Se tivesse falado e não aceitado a imposição que ela tinha incorporado de silêncio, ela poderia estar aí com a gente. Me dói muito saber disso, que poderia ter sido diferente.

Todos podem ter HIV, mas os quem têm, em geral, pertencem a grupos mais marginalizados. Não tenho pretensão de que sozinho eu acabe com o preconceito. O que eu quero é encontrar pessoas e nesses encontros pensarmos juntos em outros horizontes e partilharmos saberes, seja numa rodovia ou estradinha isolada de tudo, perdida no mundo.

Se em um minuto ou dois de conversa eu conseguir mostrar o que sente uma pessoa que leva a marca de um estigma e isso ajudar essa pessoa a ser mais solidária com os sofredores do mundo, acho que já ganhei bastante coisa.