Sala VIP

Diretores de ‘Cinema de Amor’ falam ao Dois Terços sobre o longa-metragem

Genilson Coutinho,
21/10/2019 | 19h10

Foto. Divul.

A dupla de cineastas Edson Bastos e Henrique Filho apresenta seu terceiro longa-metragem, “Cinema de Amor”, no XV Panorama Internacional Coisa de Cinema nos dias 2 de novembro, às 17h30, no Espaço Itaú de Cinema – Glauber Rocha, em sessão seguida por debate. O filme será exibido novamente em 6 de novembro, às 13h, no mesmo local.

Descrito pelos cineastas como um “selfiementary”, uma espécie de documentário feito com o celular, a proposta é acompanhar o cotidiano do casal, que se filmou durante seis meses.

Em entrevista, Edson e Henrique falam sobre o processo de criação do novo trabalho, as dificuldades que produções LGBT enfrentam no Brasil e como lidaram com os caminhos para a produção do cinema independente.

– Como surgiu a ideia de fazer esse filme? O que motivou?

Edson: Desde o ano passado a gente estava conversando sobre essa possibilidade de registrar nosso cotidiano. Colocamos alguns momentos em prática, mas não estabelecemos uma rotina. Desde fevereiro até julho decidimos filmar com o próprio celular, já que a gente sempre falava que é possível filmar com o celular que está ao nosso alcance, e de fato foi muito mais prático filmar com o celular. Pensando também nesse momento político de silenciamento de liberdade, de pensamentos e recursos voltados para projetos que tenham temática LGBT’s. Pensamos nessa proposta de falar sobre a gente, pensar nosso lugar de fala, que é diferente de muitos outros casais, de muitos outros casais de cineastas também e tentar normalizar o amor. Tentar mostrar que somos pessoas como qualquer outra, que merecemos ser felizes, que temos problemas, temos contas. Nesse processo o próprio filme retrata também de ver a gente bem desempolgado, de não ser selecionados em editais, sem projetos, tendo que abandonar a base de produção. Foi uma espécie de estímulo entre a gente de fazer alguma coisa porque a gente precisa criar também senão a gente enlouquece.

– Outras pessoas participam do filme?

Edson: Tem outras pessoas no filme também. Tem momentos em que estamos ensaiando a peça “Velôsidades”, do projeto Caetanear, que a gente participou nesse ano. Tem também muitos momentos com amigos em casa.

– Vocês se inspiraram em alguma obra para a realização deste filme?

Edson – Muitas obras nos inspiraram, sobretudo as de Almodóvar. Toda a trilha sonora original foi inspirada em outros filmes de Almodóvar. Algumas obras foram revisitadas, desde o cinema verdade em “Crônicas de um Verão” (1961) de Jean Rouch e Edgard Morin, ao fora de campo em “Blow Job” (1964) de Andy Warhol, além do beijo dos amantes em “Plata Quemada” (2000) de Marcelo Pineyro. Nos inspiramos também em outras produções de baixo custo que experimentamos para a VooTV nos últimos anos, um canal no YouTube onde produzimos conteúdo para a web, abordando diversos temas, utilizando diversas partes da nossa casa como locação e os recursos audiovisuais que estão ao nosso alcance. Além disso, o filme é construído também com referência à linguagem das redes sociais, na fragmentação do que é exposto da vida íntima nos stories. Então a narrativa é fragmentada e dinâmica. Chamamos o filme de selfiementary, proposta que utiliza o celular para criar uma narrativa tendo o(a) próprio(a) cineasta como sujeito social do filme.

– De que forma “Cinema de Amor” entra na filmografia da dupla?

Edson: Cinema de Amor é o terceiro projeto de longo formato que dirigimos juntos. “A professora de música” (2016), ficção que conta a história do sarau da Escola de Música Lá Maior, promovido da Professora Aida e “Dr. Ocride” (2018), documentário que conta a história do advogado, político e escritor sul-baiano Euclides Neto. Ambos filmados em Ipiaú e abordando personalidades dessa cidade. “Cinema de Amor” (2019) foi motivado pela necessidade de reinvenção do modo de produção hegemônico, viciado no modelo hollywoodiano, com grandes equipes e equipamentos. Parte também da necessidade de criação como forma de expressão da nossa liberdade artística num momento em que vivemos censuras descaradas no campo da cultura e da educação. É também uma reação ao crescimento do conservadorismo no mundo, que tenta nos calar de diversas formas, seja impedindo que nossas histórias sejam contadas através de filmes e matando nossas ideias ou de fato nos matando. É muito triste lembrar que o Brasil é o país que mais mata LGBT’s no mundo, onde um LGBT é morto a cada 20 horas.

Henrique: Além disso, estamos com ideias engavetadas há pelo menos três anos, período em que o Governo do Estado da Bahia passou sem lançar editais culturais, prejudicando muitos artistas, gestores culturais e empresas. Esse conjunto de fatores fez com que olhássemos para nós mesmos, percebêssemos que poderíamos emprestar a nossa história e colocar a nossa cara na frente da câmera. Estamos juntos há mais de 10 anos e casados há três anos. Queríamos mostrar uma das diversas possibilidades de rotinas que um LGBT pode ter. A nossa, abordada no filme, é a de um casal gay de cineastas oriundos do interior da Bahia, Ipiaú, que tentam sobreviver de arte em Salvador. Para nós era muito importante também retratar o ano de 2019, mostrando o contexto onde ultraconservadores misóginos, lgbtfóbicos e racistas, tomaram o poder no Brasil.

– Como foi a experiência de realizar este filme autobiográfico? Existe uma ansiedade em mostrar esse lado mais íntimo do casal para o mundo?

Henrique: Existe uma ansiedade do público em consumir tais conteúdos, em ter acesso à intimidade de pessoas, sobretudo celebridades. Particularmente gostaríamos que filmes como esse fossem feitos em diversos pontos estratégicos, sobretudo para naturalizar muitos comportamentos que fujam do padrão do narrador eurocêntrico: homem, heterossexual, branco. Não queremos ser vistos como exemplo ou modelos de nada, muito menos buscamos uma autopromoção, pretendemos, com esse filme, naturalizar a nossa forma de vida, mostrar que somos uma família com muito amor, que passamos por problemas, que temos desentendimentos, que também pagamos contas e merecemos os mesmos direitos que todos os indivíduos. Mas também fizemos esse filme para re-existir, como resposta às censuras e ao preconceito do atual presidente, e como resposta à péssima política cultural do Estado da Bahia, que após três anos sem fomento através de editais setoriais de cultura, lança editais problemáticos que impedem, inabilitam e limitam muito mais do que promovem o acesso aos bens culturais.

– Há um impasse na justiça para que a Ancine retorne com o edital com séries de temática LGBT, que recentemente foi criticado pelo presidente Jair Bolsonaro. Vocês têm acompanhado isso? 

Henrique: Sim. Inclusive o filme cita essa e outras arbitrariedades do atual presidente, como o fechamento do Ministério da Cultura e a tentativa de fechar a Ancine. Também tínhamos uma obra que estava concorrendo em uma das linhas desse mesmo edital e ficamos muito chocados com a censura explícita à cultura de um modo geral e aos conteúdos LGBT’s de uma forma específica. Vimos também que a Justiça obrigou o Governo Federal a retornar o edital, o que nos dá esperanças de que há pessoas no judiciário que são isentas e de que as decisões equivocadas do presidente podem ser revertidas. Entendemos o cancelamento do edital como uma censura declarada às populações Negras e LGBT’s do Brasil, visto que as obras atingidas abordam tais temas e afirmamos que tal atitude parte da ignorância e preconceito do atual presidente e seus asseclas, algo que pode ser resolvido com amor no coração, militância, estudo e com a justiça agindo corretamente.

– O que vocês esperam do cinema nacional de temática LGBT para o futuro?

Edson: Acreditamos que o Cinema LGBT resistirá. Mesmo não havendo editais selecionando nossas histórias, a gente se reinventa e utiliza os recursos ao nosso alcance para não ficarmos prisioneiros desse sistema de fomento e para resistirmos. É um nicho de filmes que só cresce e possui um público cativo para consumir tais narrativas, haja vista a quantidade de Mostras e Festivais LBGT’s espalhadas por todo o mundo. Não adianta nos censurar, não adianta querer nos interromper, nós vamos persistir.