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Dia do combate à Aids: 30 anos depois, preconceito ainda é maior aliado do vírus HIV

Genilson Coutinho,
01/12/2014 | 10h12

 

O estudante Max Goudar organiza festa de Natal para pessoas carentes em São Gonçalo, no Grande Rio: ‘ Agência O Globo / Pedro Kirilos

O estudante Max Goudar organiza festa de Natal para pessoas carentes em São Gonçalo, no Grande Rio: ‘ Agência O Globo / Pedro Kirilos

Mais de 30 anos depois do surgimento da Aids, os homens que fazem sexo com homens continuam sendo a parcela mais vulnerável da população brasileira (e de muitos outros países) à infecção. A prevalência do vírus entre gays é de 10% a 15%, segundo levantamentos, enquanto que, na população em geral, é de 0,6%. Especialistas ouvidos pelo GLOBO são unânimes em afirmar: o preconceito e a discriminação são os maiores responsáveis por essa situação. A recente onda conservadora e homofóbica só faz agravar o problema.

– O preconceito está presente o tempo todo – atesta Max. – A minha antiga igreja, por exemplo, não aceita gays, imagina com HIV.

A diretora do Programa de Aids das Nações Unidas (Unaids) no país, Georgiana Braga-Orillard, confirma que, atualmente, este é o maior desafio para o combate à epidemia.

– O Brasil tem uma resposta muito boa no que diz respeito aos medicamentos disponíveis, mas a discriminação das populações mais vulneráveis continua sendo um desafio – descreve. – Muitas pessoas morrem sem sequer saber que têm a doença. Elas têm medo de fazer o teste, de perder a família, os amigos, o emprego… E acabam chegando muito tarde ao tratamento. Em Curitiba, 20% dos diagnósticos são feitos depois do óbito, para você ter uma ideia.

 

DIAGNÓSTICO NA DOAÇÃO DE SANGUE

Chefe do Laboratório de Aids da Fiocruz e responsável pelo teste do uso preventivo de drogas do coquetel entre os grupos mais vulneráveis, Beatriz Grinsztejn acredita que o estigma e a discriminação são peças-chave para a vulnerabilidade à infeção.

– Os serviços de saúde, em geral, não são amigáveis – constata Beatriz. – Por isso, o diagnóstico é pior, e o número de mortes é alto. Já imaginou o acesso de uma transexual a um serviço de saúde? Não tem coisa pior.

Por sorte, não foi o que aconteceu com Max. Acostumado a doar sangue, ele tinha sido testado involuntariamente em março de 2012, e seu resultado fora negativo. Em maio, no entanto, ao retornar ao hemocentro, descobriu que era soropositivo. Um teste rápido confirmou o resultado.

– Foi um momento horrível, muito difícil – relembra. – Larguei a faculdade, o emprego, não conseguia fazer nada. Eu sentia tanta raiva, tanto ódio da pessoa (de quem contraiu o vírus) que, se a tivesse encontrado, não estaria falando agora com você. Eu a teria matado e estaria preso. Naquela época, não conseguia entender que eu também tinha responsabilidade pelo que aconteceu.

Felizmente, no entanto, Max também teve grande apoio da mãe, em particular, e da família, em geral, o que nem sempre ocorre. O diagnóstico precoce o levou rapidamente ao tratamento e a uma rede de jovens vivendo com HIV. Ali, teve o acolhimento e as informações de que precisava para se equilibrar emocionalmente e passar a viver com o vírus.

Estudante de Ciências Sociais, ele hoje se dá conta do quão pouco sabia sobre a infecção.

– A informação que eu tinha sobre Aids era a que eu tinha visto no filme do Cazuza – conta. – Não tinha a menor preocupação com isso, achava que era uma coisa completamente distante, algo que só acontecia com travestis, com gente muito promíscua.

Especialistas dizem que, de fato, o conhecimento básico sobre a infecção e suas formas de prevenção não tem chegado às gerações mais jovens, que não viram o início da epidemia, as mortes icônicas de Cazuza e Renato Russo, o sentido de urgência e medo da comunidade médica, a mobilização social das comunidades gays.

– É o que mais escutamos hoje dos mais jovens – diz Georgiana. – A informação não chega. Acho que isso acontece porque estamos usando a mesma mensagem de 30 anos atrás. Há 30 anos, telefone era um bem declarado pelas famílias. Hoje, todo adolescente tem um celular. Precisamos adaptar a mensagem também às faixas etárias e às diferentes regiões do país.

Filmes como “Boa sorte”, de Carolina Jabor, lançado na última quinta-feira, que tem uma soropositiva como protagonista (Deborah Secco, no papel de Judite), podem ser cruciais para a disseminação do que se deve saber sobre a infecção e para alcançar públicos mais amplos, de diferentes faixas etárias e classes sociais. Sem falar, é claro, nas telenovelas.

– A falta de informação leva ao preconceito, discrimina-se o que não se conhece – constata o ator Mateus Solano, de 33 anos, embaixador da boa vontade do Unaids por conta do sucesso de seu personagem Félix na novela das 21h “Amor à vida”, que protagonizou o primeiro beijo entre dois homens na televisão brasileira. – Fazer um personagem capaz de mexer com conceitos e preconceitos, de provocar uma reflexão no público, é muito gratificante. No fim, o beijo foi a pedido do próprio público.

FALTA DE APETITE E ENJOOS

Na opinião de especialistas, a mensagem de que a Aids seria uma espécie de “doença crônica”, controlável com remédios, tinha, originalmente, o objetivo de tentar reduzir o estigma e o pânico que sempre acompanharam a infecção. Fazer com que as pessoas procurassem o diagnóstico, tomassem os remédios, lutassem por uma qualidade de vida melhor. O que as gerações mais novas entenderam, porém, é que a Aids “deixou de ser um problema”.

– Isso está longe de ser verdade – Max sustenta. – Em primeiro lugar, existem os problemas psicológicos. Você descobre que tem uma doença que pode matar. Você perde amigos para a doença. Isso tudo abala muito. Além disso, tem os efeitos colaterais dos remédios. Tem dia em que você está ótimo. Mas tem dia em que não dá para levantar da cama, que você tem diarreia, vomita o dia todo, não consegue comer. Não é tão simples.

Nos dias em que está ótimo, no entanto, Max faz planos para retomar, no ano que vem, o curso de Ciências Sociais. Ele já voltou a trabalhar, trocou de igreja (agora frequenta a Contemporânea, em Niterói, no Grande Rio, onde se aceitam os homossexuais) e, mais importante, começou a namorar novamente. Atualmente, sua maior preocupação é com a festa de Natal que organiza anualmente para crianças carentes de São Gonçalo, também na região metropolitana do Rio. Para a distribuição de brinquedos e elaboração da ceia para pelo menos 1.500 menores, Max está buscando doações pelo site www.jovensrio.org.

– Minha vida mudou completamente. No início, eu achava que era só eu (quem convivia com o HIV). Mas então comecei a olhar em volta. A adaptação levou um tempo. Hoje eu vivo. Quero falar sobre esse assunto para ajudar os outros, para que as pessoas vejam que há um caminho. E quero muito organizar mais uma vez esse Natal Feliz.

Do O Globo