Crônica – Latrocínios homofóbicos: afetos, prazeres e cidadania subtraídos?

Genilson Coutinho,
06/06/2013 | 10h06


Sábado triste, o arco íris em degradê de cinzas, mais um local de crime na labuta do departamento de homicídios, mais um homossexual barbaramente assassinado dentro da sua morada. Um corpo despido onde apenas lençóis ganham vida, tingidos por um rubro escarlate. Cadeiras quebradas, objetos em desalinho, gritos sufocados numa madrugada infinda, copos, cerveja e um punhal sobre a mesa; tudo revirado e forçosamente, dramaticamente, as portas do armário foram abertas.
Um computador, um DVD… cadê? Um abraço, um sorriso, um momento de prazer… quedê?
Muitos se ressentem quando os delegados de polícia, ao serem entrevistados sobre esses recorrentes episódios, elidem a homofobia e tratam tais assassinatos como meros latrocínios. Sim, ainda existe muito pudor por parte dos nossos investigadores em perquirir a homossexualidade e a motivação homo(trans)fóbica; outras vezes falta informação e/ou interesse nesse debruçar. Famílias também se constrangem (bom seria que desde cedo a vergonha cedesse ao respeito, ao orgulho afetuoso, ao sentimento elevado de dignidade pessoal).

Um latrocínio pode ser considerado homo(trans)fóbico sempre que o ódio contra LGBT’s caminha lado a lado, revelado na brutalidade de sua prática, na assinatura deixada pelo algoz, no entendimento que lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais seriam criaturas desprezíveis, cidadã(o)s de 2ª, de 3ª classe.
Aqueles focados apenas no aspecto da punição encontrarão alento no caráter patrimonialista do nosso ordenamento jurídico, que pune mais exemplarmente os roubos qualificados pela morte (latrocínios) que os homicídios simples. Ademais o julgamento ficaria a cargo do juiz singular e não do tribunal do júri composto por leigos, em tese mais propensos a serem contaminados pelo discurso higienista e machista teatralizado pela defesa. Isso se houver um réu onde a regra ainda é a criminalidade dentro do armário.
Atentemos, contudo, para o puritanismo às avessas em muitas retóricas sempre que as investigações policiais apontam para um comportamento de risco, em especial por parte dos gays e das travestis, realidade que precisa ser enfrentada e prevenida através de políticas públicas afirmativas. Não sejamos maniqueístas ou românticos, a vitimologia vem demonstrar que a vítima, relegada ao ostracismo no nosso sistema penal, não é assim tão passiva, neutra, fungível e por vezes contribui para a dinâmica do crime, o que se aplica àqueles delitos não motivados exclusivamente pelo ódio homo(trans)fóbico. Por óbvio não deve existir juízo de valor “moral” nessa constatação.
O Departamento de Saúde americano concluiu que os jovens gays seriam três vezes mais propensos à prática de suicídios. Dado este levado para o palco dos hediondos assassinatos evidenciam o quanto a comunidade LGBT padece de baixa autoestima e autoimagem por conta da homo(trans)fobia social. Comumente os algozes são michês e não seriam eles, por vezes homossexuais egodistônicos, vítimas da homofobia internalizada ao desfigurarem os rostos de suas vítimas, como um espelho estilhaçado, na busca desesperada de amainar a fúria da sua não aceitação?
Característica recorrente desses latrocínios é a clandestinidade de sua prática. A cultura heterossexista impele suas vítimas a encontros casuais, fortuitos, em lugares ermos, altas horas da noite ou madrugadas. Muitos negligenciam sua orientação sexual, contexto que torna difícil e desafiadora a elucidação desses crimes.
O Grupo Gay da Bahia, atento não apenas à publicação do relatório anual de assassinatos, está debruçado no aspecto da prevenção através de campanhas de resgate da autoestima e dicas de prevenção, a exemplo da cartilha intitulada “Gay vivo não dorme com o inimigo”, importante contribuição da sociedade civil organizada.

Enquanto isso o governo federal mantêm a suspensão da distribuição de material educativo nas escolas. No mesmo diapasão o veto à campanha de prevenção à AIDS voltada aos jovens gays e o fechamento do Grupo de Trabalho de Segurança Pública para LGBT da Secretaria Nacional de Segurança Pública. O governo federal está de joelhos para os conservadores e fundamentalistas e esta orquestração vem na contramão de muitas nações democráticas cujas lideranças têm assumido o compromisso público em favor da plena cidadania LGBT.
Nossos jovens não são educados para o respeito à diversidade, ao que parece fizeram intercâmbio cultural no Oriente Médio. Parafraseando os doces bárbaros: “O Irã é aqui, o Irã não é aqui”. A realidade não rima e nada resta senão comentá-la, um desabafo urgente e crônico, quando na madrugada de 1º de junho de 2013, num país onde a cidadania LGBT tem sido constantemente aviltada e usada como moeda de troca, mais uma vida foi subtraída.

Por Mário de Carvalho Leony
Delegado de Polícia Civil de Sergipe
Coordenador do GT de Segurança Pública para LGBT da SSP/SE
Membro da Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBT (RENOSP LGBT)
Especialista em Ciências Criminais
Especialista em Gestão Estratégica em Segurança Pública