Crônica do tempo da inocência a Marcha das Vadias

Genilson Coutinho,
28/05/2012 | 10h05

Como o poeta. Minha vida que parece muito calma tem segredos que não posso revelar. São tantas emoções, são momentos inesquecíveis, como esse da foto. E eu tenho tantos deles, registrados seja no papel, no coração ou na mente. Todos nós temos! Eu estava hoje procurando uma coisa na minha caixa de Pandora, encontrei outra coisa, uma coisa linda de morrer, essa foto e outras que eu por um tempo não lembrava mais e que são registros de minha vida em cor de rosa. Vê-las agora foi um retorno ao tempo da inocência e da saudade, saudade porque já passou e não volta.

O que fica agora é o “doce remember” doce recordação de cores, alegrias do que se foi à descoberta de um adorável mundo novo que se apresentava diante de mim. Falo das possibilidades, dos sonhos, das viagens, dos homens, das pessoas que passaram e deixaram boas lembranças. Isso tudo em uma foto de um menino negro pelado em uma janela, mas com a mão direita fechada como se estivesse prontinho da Silva para socar bem no olho da inveja. Como esse menino cresceu e se tornou algo que nem ele sabe o que é mesmo. O menino nu virou um homem, mas não um homem igual aos outros, um homem especial, virou um mito, um assunto que corre de boca em boca, objeto de desejo, de ódio para tão poucos e alegria para muitos.  Menino que cresceu sendo amado e aprendeu a amar às vezes de forma incondicional. Menino que virou homem e que sempre encontra no amor um motivo para viver, às vezes amor tipo o de Eros, ou de Tanatos, mas muitas vezes amor Ápage, verdadeiro.

Mostrando uma foto dessa pode até parecer que agente tá que agente não quer envelhecer, acompanhar o tempo nas suas estações definidas. Mas isso é coisa da nossa cabeça. Também é coisa de nossa cabeça que agente nunca estamos felizes com a idade que temos. Quem não já se pegou muitas vezes querendo ter mais, manas idades ou até mesmo não ter nascido. Mas isso é coisa de nossa cabeça. Nascer da barriga de uma mulher, ser acalentado nos seios dela é coisa que não tem preço.

Esse tempo da foto foi uma época da imagem impressa no papel, me deu essa alegria de ver esse corpo em construção. Esse corpo que ao longo do tempo foi marcado com tantas marcas, emoções, alegrias, exposição e também tocado por mãos e bocas. Penetrado por outros corpos que passaram que agente tem lembranças saborosas como a mordida em um pêssego suculento e maduro, água doce e fria que mata a sede e umedece os lábios dos que tem sede. E por outros não tão desejáveis que não nos lembramos mais ou que buscamos esquecer.

Ontem eu fui a Marcha das Vadias por dois motivos. Um foi pela solidariedade as mulheres e a outra foi porque eu já fui uma vitima de estupro. Talvez o meu estuprador pensasse porque eu tinha esse corpo merecesse ser estuprado. Talvez o estuprador imaginasse bem lá no fundo do seu ser sombrio que tudo que é belo deve ser destruído. Ou o belo só é belo porque desperta o desejo de destruição. Associei-me por isso, eu não queria ser seqüestrado, violentado e deixado em um matagal na BR Feira de Santana Salvador, a noite, sujo e com o cheiro do esperma daquele homem que ficou em meu nariz por semanas, fedor que eu achava que todas as pessoas sentiam aquele cheiro vindo de mim, que me fez ficar horas em baixo do chuveiro me lavando com as mãos tremulas, porque eu achava que eu casa todo mundo ia saber porque aquilo estava na minha cara. Ninguém soube por que eu não tive coragem de contar pra ninguém. Como eu iria contar que aos 17 anos de idade prestes aos 18, eu um menino de corpo frágil, negro tinha sido vitima de estupro, não é fácil. Eu tinha um corpo de vadia, ou me portava como vadia, ou vadio.

Hoje eu falo, e é a primeira vez que escrevo sobre isso. Se esse homem ainda vive, eu perdôo esse gesto animal que ele praticou contra minha integridade contra o meu corpo jovem e belo. Se ele não vive mais, que encontre a paz e a luz.

Por Marcelo Cerqueira

Foto: Arquivo pessoal de Marcelo Cerqueira